GABRIEL MARCEL

04/09/2012 19:29

Gabriel Marcel nasceu em 1887 e faleceu em 1973. Foi seguidor de Hegel e dos outros idealistas. Depois abraçou uma concepção filosófica que acolhia elementos do realismo tomista e do existencialismo. Tomistas são as suas teses de metafísica e de ética, enquanto existencialistas são o método fenomenológíco, a aversão ao racionalismo e a insistente referência de toda a problemática metafísica ao homem.

Suas obras principais são: Journal métaphysique (1927), Ëtre et avoir (1935); Homo viator (1944), Le mystère de l’être (1951).

A PESQUISA METAFÍSICA

Uma densa página do Journal métaphysique esclarece bem o ponto de vista de Marcel sobre a natureza da pesquisa metafísica: “Eis, segundo penso, as linhas gerais do meu livro ou, pelo menos, da intro­dução: a) Não é possível a pesquisa sobre a natureza daquilo que é metafisicamente primeiro. Esta impossibilidade se prende à pesquisa como tal e ao espírito com o qual ela é fundamentalmente conduzida. O indagador faz abstração de si; ele desaparece diante do resultado obtido. Qual é o resultado? Uma resposta válida para todos. b) Eliminar a interpretação segundo a qual a necessidade da metafísica seria uma curiosidade transcendente; ela é antes um apetite do ser. O ser tende a ser possuído através do pensamento”.

Marcel adverte contra dois erros bastante difundidos: o de se considerar a pesquisa metafísica como especulação vazia, como curiosidade extravagante; para ele a metafísica é “pesquisa daquilo que é”, do ser. Esta pesquisa não pode ser facilmente negligenciada ou posta de lado, porque o homem “tem fome” do ser. O segundo erro, não menos gr.ave e no qual muitas vezes se cai, é a pretensão de se poder conduzir a pesquisa com a mesma objetividade e desapego com os quais se leva a efeito a pesquisa científica. Trata-se de uma pretensão absurda porque na pesquisa científica o pesquisador pode fazer abstração de si, manter-se fora da área do experimento, em posição de total indiferença, ao passo que o filósofo é envolvido pessoalmente na pesquisa; o seu ser, o seu conhecer, o seu querer são trazidos diretamente para a questão. Uma das diferenças mais evidentes entre pesquisa científica e pesquisa filosófica é que a primeira pode ser feita por um só em nome de todos, ao passo que a segunda deve ser feita por cada um.

Ninguém pode descobrir o mistério do ser por meio de outro. Quando muito quem já o descobriu pode solicitar, estimular, orientar a pesquisa dos outros, mas não pode substituí-los. Coerente com estes princípios, Marcel diz, em Le mystère de l’être, que não pretende, em seus escritos, dirigir-se a uma inteligência abstrata e anônima, mas a seres individuais, para despertar neles uma profunda área de reflexão mediante uma anamnese inspirada no esforço socrático-platônico; neste sentido, ele se recusa a definir o seu pensamento como existencialista, preferindo a qualificação de neo-socrático ou desocrático-cristão.

Enquanto, pois, a ciência pode falar do real na terceira pessoa, a reflexão filosófica é o reino da pergunta e da resposta, do eu e do tu, o reino no qual domina a segunda pessoa. Semelhante metafísica está fora daquela ordem de exposições doutrinais, acabadas ou que se pretendem acabadas, no plano lógico; esta filosofia é antes de tudo de l’ordre de l’appel (“da ordem do apelo”), apelo de um espírito a outros espíritos para que realizem a “conversão” do mistério. Nesta perspectiva a verdade cessa de ser formalmente adaequatio rei ei intellectus (“adequação da coisa e do intelecto”) para elevar-se a valor vital; mais do que algo enunciado, a verdade se torna algo vivido, experiência pessoal.

Em Ëtre et havoir (“Ser e ter”), Marcel ilustra a diferença entre pesquisa científica e pesquisa filosófica em termos de problema e mistério. “Parece de fato que entre um problema e um mistério existe uma diferença essencial: um problema é algo que encontro todo inteiro diante de mim e que posso analisar e reduzir; o mistério é algo em que eu mesmo estou empenhado e que, por isso, só pode ser pensado como uma esfera na qual a distinção do em mim e do diante de mim perde o seu significado e o seu valor inicial. Enquanto um problema autêntico se justifica segundo certa técnica apropriada, em função da qual se define, um mistério transcende por definição toda técnica imaginável”. Pode suceder que um mistério seja degradado a problema; temos então um procedimento fundamentalmente vicioso, que se manifesta como corrupção da inteligência.

Outras vezes Marcel explica a diferença entre ciência e metafísica apelando para a diversidade entre reflexão desagregadora e reflexão unificadora (reflexão primeira e segunda). A primeira é usada pela ciência, a segunda pela metafísica. Enquanto a reflexão científica tem necessidade de fazer distinções e de seccionar o objeto, a reflexão metafísica tem como tarefa a unificação, o “recolhimento” da realidade. A reflexão metafísica se esforça por restaurar o concreto além das determinações separadas e desarticuladas do pensamento científico”. O processo metafísico essencial consistiria, portanto, numa reflexão sobre esta reflexão (científica), numa reflexão elevada à segunda potência, através da qual o pensamento se estende para a recuperação de uma intuição que se perde de certa forma na medida em que se exerce”; esta re­flexão é “reconstruidora”, “recuperadora”, é um “recolhimento”.

PRIMAZIA DO SER

Entre todas as realidades passíveis de pesquisa metafísica, a prioridade compete ao ser. Isto porque, segundo Marcel, o ser goza de du­pla primazia: em relação ao pensamento e em relação ao ter.

— Primazia do ser sobre o pensamento. Esta primazia é afirmada por Marcel em termos inequívocos depois da sua conversão ao realismo. “Pôr a imanência do pensamento no ser é reconhecer com os realistas que o pensamento, uma vez posto, refere-se a algo que o transcende e que ele não pode pretender reabsorver, sem trair a sua verdadeira natureza”. “Pensar a primazia do ser em relação ao pensamento é reconhecer que o pensamento é abrangido pelo ser ou que lhe é de certa forma interno”.

Não há e não pode haver passagem do pensamento ao ser; esta passagem é radicalmente impensável; o pensamento já está no ser e não pode sair dele, não pode fazer abstração dele, a não ser em certa medida: “E necessário, pois, dizer que o pensamento é interno ao ser, que ele é certa modalidade do ser”. “No fundo eu admito que o pensa’ mento é ordenado para o ser como o olho é ordenado para a luz, segundo a fórmula tomista”.

— Primazia do ser sobre o ter. O ter é aquilo que é objetivável, exponível a outros, é a exteriorização do ser, o seu fazer-se espetáculo: ele é o coisificar-se do ser, o seu vir para fora, o seu epifanizar-se, fragmentar-se, mumificar-se. O ter, acentuando a si mesmo, anula o ser; mas, tornando-se instrumento, subirá ao plano do ser. Somente assim é que poderemos abordar o ser sem transformá-lo em ter, em objeto, em espetáculo; em suma, a relação ser-ter é uma relação de essencial tensão dialética na qual o ser está sempre ligado ao ter e deve purificá-lo, não deixando-se absorver por ele, mas orientando-o para si.

O HOMEM, SER ENCARNADO E ITINERANTE

Uma das doutrinas mais conhecidas de Marcel é a que afirma que o homem é um ser encarnado. Marcel chegou a esta doutrina através de uma análise do significado da proposição “eu existo”; segundo ele, a reflexão metafísica revela que esta proposição significa “eu sou o meu corpo”.

Por corpo deve-se entender não tanto a matéria extensa e visível quando a intimidade-concreção do eu, isto é, a encarnação ou a individualização do existir. Assim, referida ao homem, a proposição “eu existo” significa: “eu sou encarnado”. “Ser encarnado é aparecer como corpo, como este corpo, sem poder identificar-se com ele, sem poder distinguir-se dele; intímidade-concreção, em suma, entre alma e corpo; mistério da fusão de intimidade e concreção, a encarnação exprime exatamente este mistério. Mas a encarnação não exprime somente a individualidade como também a participação. Esta se manifesta antes de tudo no sentir; o sentir é participação imediata naquilo que nós habitualmente chamamos sujeito, num ambiente no qual não há fronteiras que o separem”.

O ser se revela como com ser, o “eu existo” se torna “o universo existe”, não como soma de objetos, mas como teatro de experiências, de existentes, em diálogo entre o eu e o tu.

Outra doutrina muito conhecida de Marcel é a do homem itinerante ou homo viator. O homem, já ficou dito, é um ser encarnado; é esta a sua natureza; mas a pesquisa neste campo deve orientar-se para a descoberta de um sentido para a vida, o qual é sempre o sentido da minha vida; recusar-se a esclarecer o sentido da vida é renunciar à própria identidade profunda, é dissolver-se no ter. Ora, refletindo no sen­tido da vida, o ser encarnado se revela ser itinerante, homo viator.

E aqui, na concepção da vida como peregrinação, que a reflexão descobre uma fenomenologia e uma metafísica da esperança. A esperança estrutura a vida humana, é a abertura vivida do ser encarnado; tudo aquilo que o ser-no-mundo apresenta pode constituir um obstáculo, uma provação, um escândalo, numa palavra, a tentação subjugadora do ter. Ora, a esperança é a grande alavanca que, sem renegar o ser-no-mundo, antes assumindo-o, sublima-o a instrumento de elevação; e aquilo que poderia constituir um convite à desesperança é exorcizado.

Justamente na esperança está a prova do transcendente; com ela se afirma que “há um ser, além de todo dado, além de tudo aquilo que pode fornecer matéria para um inventário ou servir de base para um cômputo qualquer, um princípio misterioso que está em conivência comigo, que não pode não querer aquilo que eu quero, pelo menos se aquilo que eu quero merece efetivamente ser querido e de fato é querido por mim em minha totalidade”. Assim o universo tem sentido para mim, e a metafísica se revela, qual é e deve ser, “exorcismo da desesperança”.

À transcendência não se chega, porém, por meio de argumentações e de outros processos lógicos, mas pela intuição. O homem é feito para Deus e não pode deixar de reconhecê-lo quando ele passa na sua proximidade. A atitude que convém ao homem diante de Deus não é a de especulação nem a de interrogação, mas a de adoração, de humilde oração. O filósofo deve falar a Deus, não de Deus.

“E tempo para o metafísico, se ele quer sair definitivamente dos trilhos da epistemologia, de compreender que a adoração pode e deve ser, pela reflexão, uma terra firme sobre a qual ele deve apoiar-se, apesar de, como indivíduo empírico, não poder participar dela senão na reduzida medida que a sua indigência natural comporta”.

VALOR DAS ANALISES EXISTENCIAIS DE MARCEL

Por causa da perspectiva existencialista na qual se desenvolve, falta à obra de Marcel uma reflexão suficientemente aprofundada e rigorosa sobre a essência e a natureza do ser. Não obstante, as suas análises existenciais são extremamente interessantes por duas razões. Primeiro porque falam de sentimentos e afetos humanos como a esperança, a f é, a alegria, a adoração, que os outros existencialistas em geral ignoraram. Segundo, porque, através do exame das implicações destes sentimentos, Marcel mostra que o homem não está preso à camisa-de-força do desespero, nem votado à morte e ao nada, como queriam Heidegger e Sartre.