JACQUES MARITAIN

04/09/2012 19:18

Filósofo cristão da democracia

 

Jacques Maritain (1882-1973) foi o mais autorizado representante do neotomismo. Para ele a sua obra era uma continuação “filosófica” da teologia de santo Tomás. “Eu não sou um neotomista — dizia ele—e na pior das hipóteses preferiria ser um paleotomista. Na realidade eu sou, eu espero ser um tomista”.

A sua atividade especulativa se moveu constantemente entre dois pólos: santo Tomás e o pensamento moderno. Do primeiro desenvolveu a problemática filosófica nos pontos que ainda não tinham sido trata­dos (filosofia da ciência, filosofia da história) ou que o tinham sido de modo insuficiente (filosofia da arte, filosofia política). Do segundo se empenhou constantemente em estudar e analisar, à luz do tomismo, as doutrinas filosóficas, religiosas, sociais e políticas, denunciando suas profundas lacunas e aberrações.

De toda a vasta produção filosófica de Maritain a que conserva maior interesse e atualidade é a que concerne à política: ele é o teórico cristão da edificação de uma verdadeira democracia como opção válida diante dos dois sistemas gravemente opressivos que hoje imperam no mundo, o liberalismo e o comunismo.

Maritain refletiu muito e apaixonadamente sobre a situação da sociedade moderna, sobre a sua cultura, os seus ideais, a sua situação moral, política, religiosa. Ele concorda com Marx, Nietzsche e Freud em denunciar os males ruinosos que a afligem e a crise profunda que a atormenta, mas se afasta deles quando se trata de determinar os métodos e os meios para salvá-la.

No fim da segunda guerra mundial Maritain escrevia: “Estamos assistindo à liquidação daquele mundo que o pessimismo de Maquiavel levou a tomar a força pela essência da política; daquele mundo que o cisma de Lutero, separando a Alemanha da comunidade européia, fez perder o equilíbrio; daquele mundo no qual o absolutismo do ancien régime substituiu aos poucos a ordem cristã por uma ordem de constrição cada vez mais distanciada das fontes cristãs da vida; daquele mundo no qual o racionalismo de Descartes e dos enciclopedistas instilou um otimismo ilusório e que o naturalismo pseudocristão de J. J. Rousseau levou a confundir as sagradas inspirações do coração com a espera de um Reino de Deus sobre a terra, proporcionado pelo Estado e pela Revolução; daquele mundo ao qual o panteísmo de Hegel ensinou a deificar o movimento histórico e cujo advento foi apressado —junto com a ruína da classe burguesa — pelo regime capitalista do lucro, pelos conflitos imperialistas e pelo absolutismo desenfreado dos Estados nacionais. Este mundo nascera do cristianismo, e as suas forças vitais mais profundas vinham da tradição cristã. Por isso foi julgado mais severamente. O seu erro foi crer que o homem pudesse salvar-se com seus próprios meios e que a história humana pudesse prescindir de Deus” (MARITAIN, J., Cristianismo e democracia).

Como se vê, na opinião de Maritain, a desagregação da sociedade moderna tem sua origem no pensamento filosófico. A característica da Idade Moderna é a de ser uma idade reflexa, uma idade dominada pela tomada de consciência da experiência humana em todas as suas formas. Mas quando ela vinha aprofundando a consciência dos direitos e dos deveres do homem, da sua intensidade e da sua extensão, quando ela procurava tornar-se autoconsciência total, era “fagocitada” por uma metafísica calcada e estruturada em função do saber científico experimental, isto é, como metateoria da ciência (mecanicismo) e chegava a produzir e a provocar uma tomada de consciência da imanência intra-humana, deixando de lado o Fundamento, antes, pondo alternativa­mente a questão da relação imanência-Fundamento e acabando por pôr e resolver o segundo termo no primeiro. Daí por diante a imanência se contrapôs dramaticamente à Alteridade e à Transcendência e se co­locou como começo absoluto de toda ordem e de todo valor. Desenvolveu-se assim toda uma série de humanismos ateus, sobre os quais recai a responsabilidade de terem arrastado a humanidade no nosso século até a beira do abismo.

Para sairmos da grave crise em que nos encontramos só nos resta um caminho: recuperarmos a dimensão religiosa que o pensamento moderno insensata e maliciosamente sufocou, voltando-nos para a concepção cristã da vida e da sociedade. No terreno político o único sistema de pensamento capaz de garantir a recuperação dos valores pessoais e sociais necessários à vida social ordenada é o ideal democrático que se inspira no cristianismo. “No seu princípio essencial, esta forma, este ideal de vida comum que se chama democracia, procede da inspiração evangélica, sem a qual ela não pode subsistir”(Id., ibid.).

Para distingui-la da cristandade medieval, Maritain dá a esta for­ma de democracia fundada nos princípios evangélicos a designação de nova cristandade. A nova cristandade é uma sociedade democráticadotada de uma filosofia própria da democracia e da política, e de uma fé secular própria. Ela se distingue da cristandade medieval por um modo novo de conceber as relações entre o homem e o mundo, de um lado, e entre o homem e o sagrado, do outro. A cristandade medieval fizera do sagrado uma categoria ao mesmo tempo sociológica e sacral; a nova cristandade fará do sagrado uma categoria que ordena para si a criatura no que concerne ao seu fim último, mas reservará ao espaço estrutural do mundo uma configuração categorial profana, isto é, distinta (sem ser separada) do sagrado. A nova cristandade será um humanismo por­que é motivada e estruturada pelo inviolável sentido do homem e da pessoa, tomada esta como termo e destinatária das estruturas temporais, e será um humanismo integral porque considerará o homem apoiado num fundamento transcendente, aberto às fecundações da graça e às relações vitais com Deus, que o salva e o santifica; e considerará o mundo como situação intramundana da pessoa, isto é, não como definidor absoluto do seu ser, mas como momento da sua presença no ser.

Maritain atribui à democracia de inspiração cristã cinco características:

— pluralismo: a cristandade medieval era dominada pelo princípio da unidade, ao passo que a nova cristandade será caracterizada por uma estrutura pluralista muito acentuada: pluralismo nos terrenos econômico, jurídico, institucional, político e também religioso.

— infravaléncia do temporal: a nova cristandade concebe o temporal como fim intermediário; ela supera a concepção medieval porque reconhece ao temporal uma ordem própria e autônoma, e rejeita a concepção moderna de secularização absoluta porque institui uma subordinação real e efetiva do temporal em relação ao espiritual.

— liberdade da pessoa: a nova cristandade afirma o valor absoluto da pessoa, a sua transcendência em relação aos meios temporais e políticos. No que se refere à consecução do seu destino eterno, a pessoa é responsável somente diante de Deus, não diante do Estado, o qual deve, por isso, respeitar e reconhecer as várias formas de se conceber a salvação e de se manifestar o culto a Deus seguidas pelos seus membros.

— autoridade delegada: aquele que detém a autoridade, não a detém a título pessoal e autônomo, mas em virtude do consenso da multidão, que delega a autoridade não uma vez por todas, mas periodicamente.

— colaboração: a nova cristandade tira sua especificação da tarefa comum à qual chama todos os homens, isto é, da colaboração fundada não no medo ou na violência, mas no amor e na amizade. De resto, é só no âmbito da amizade — que é a projeção sociológica e temporal da caridade evangélica — que se resolve aquela antinomia e aquela ten­são entre pessoa e sociedade que nenhum sistema capitalista ou socialista conseguiu eliminar: empenhando-se na obra comum e subordinando-se a ela, o homem se empenha e se subordina à realização da vida pessoal de outras pessoas; ele não se subordina ao Estado, à classe, a uma casta etc., mas ao bem de pessoas humanas amadas e respeitadas enquanto pessoas.

Foi principalmente por causa dessas doutrinas políticas que Maritain conseguiu que o pensamento de santo Tomás adquirisse notável prestígio também em ambientes que lhe tinham sido sempre hostis (especialmente na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos). Ele soube, com efeito, criar uma síntese feliz entre as aspirações do nosso tempo e as teses fundamentais do pensamento tomista.

Maritain percebia profundamente a decadência e a “miseria” da nossa civilização e se dizia certo da iminência de um fim apocalíptico, depois do qual tudo voltaria a ser “redenção e santidade”. Sobre o valor dessas suas predições é difícil pronunciar-se. Mas uma coisa é certa: hoje paira sobre o mundo uma densa nuvem de incerteza, de confusão, de dúvida, de ceticismo, de angústia, de desespero. O futuro parece cada vez mais incerto e inseguro. Devemos, por isso, valorizar as poucas luzes que surgem em torno de nós. Maritain deve ser considerado uma luz. São muitos os que pensam assim. Isto explica por que, depois da sua morte, começaram a florescer, em diversas partes do mundo, centros de estudo do seu pensamento.