JEAN-PAUL SARTRE

04/09/2012 19:27

Jean-Paul Sartre nasceu em Paris aos 21 de junho de 1905. Estudou filosofia na Ecole Normal Supérieure. Iniciou a carreira literária como jornalista, passando mais tarde para o teatro. Quando começou a segunda guerra mundial, foi chamado às armas, caindo prisioneiro dos alemães em 1940. Nos anos do após-guerra foi o filósofo mais popular da França e o mais discutido da Europa. Tentou também, mas sem êxito, formar um movimento político. Aproximou-se mais tarde cada vez mais do partido comunista francês, assumindo em relação a ele o papel de crítico externo, com a intenção de estimulá-lo e melhorá-lo.

As suas obras mais importantes são: A imaginação; O ser e o nada. Ensaio de uma antologia fenomenológica; A critica da razão dialética. Das obras teatrais recordemos: As moscas; o diabo e o bom Deus. Dentre os romances: A náusea.

Como o sugere o título da sua obra principal, O ser e o nada, Sartre, como Heidegger, concentra a sua análise filosófica no ser, a fim de compreender o seu significado profundo e revelar a sua verdadeira natureza.

Mas a análise sartriana chega a resultados diferentes e mesmo opostos àqueles aos quais chegara o autor de Ser e tempo. Para Heidegger, o ser é o sol esplendoroso que dá luz, calor e vida às coisas; é a positividade e o valor de todo ente; ele exerce sobre o homem, que é o seu guarda, uma grande fascinação.

Para Sartre, o ser, que ele chama de ser-em-si, para distingui-lo da consciência, que ele denomina ser-para-si, é uma massa inerte, informe, inchada, fastidiosa, “uma enorme marmelada”, como está escrito em A náusea, uma coisa desagradável e repugnante. Falando do ser, Sartre diz muitas vezes que ele é “alguma coisa em demasia”, e isto por duas razões. A primeira é que a consciência jamais consegue esgotar toda a sua realidade; a segunda é que o ser-em-si dá a impressão de ter mais do que o necessário, como um homem muito gordo.

Outra característica fundamental do ser, segundo Sartre, é a contingência. O ser não tem nenhuma necessidade. Existir é simplesmente ser; os existentes aparecem, deixam-se encontrar, mas não se deixam deduzir. Não existe nenhum ser necessário que possa explicar a existência; a existência não é uma feição falsa, uma aparência que se possa dissipar: ela é o absoluto e, conseqüentemente, a perfeita contingência.

Mas a característica do ser na qual Sartre mais insiste é o absurdo: no absurdo está a chave da existência de cada coisa. Tudo o que existe é destituído de explicação, é sem sentido; é-o em si mesmo e em relação a todas as outras coisas. Por exemplo, a raiz desta árvore é absurda. Ela é absurda em relação às pedras, às moitas de erva amarela, àlama ressecada, à árvore, ao céu, às plantas verdes. “Absurda, irredutível; nada — nem mesmo um delírio profundo e secreto da natureza — podia explicá-la”. O mundo das explicações e das razões não é o da existência”.

A CONSCIÊNCIA

O homem se distingue dos outros seres porque é dotado de consciência, ao passo que os outros seres não o são. Esta distinção é fundamental, mais importante em Sartre do que nos outros filósofos, porque ele não se contenta com afirmar que a consciência se distingue do ser, como o fizera Spinoza, nem se limita a contrapor a consciência ao ser, como fizeram antes os israelitas. Sartre aprofunda o contraste: consciência e ser são inimigos e inimigos mortais. O triunfo de um é a morte do outro. Para viver, a consciência tem necessidade de devorar o ser. Esta concepção da consciência como capacidade anuladora do ser é a doutrina mais original do existencialista francês, merecendo, por isso, uma exposição mais aprofundada. Por outro lado, o próprio Sartre tratou o argumento muito amplamente tanto em La transcendance de l’Ego como em L’être e le néant.

Em La transcendance de I’Ego Sartre distingue duas espécies de consciência: a consciência não posicional (ou consciência imediata do objeto, do ser, cuja realidade ou existência é somente conhecida, não posta, não criada) e a consciência posicional ou reflexiva, com função criativa. A criatura da consciência posicional é o eu transcendental, entendido não como substância (Aristóteles), nem como condição transcendental do conhecer (Kant), nem como produto de uma associação de idéias (Hume), mas como hipostatização do objeto da consciência reflexa.

Em L’être e le néant Sartre desenvolve a teoria da função anuladora da consciência. Esta, que ele designa freqüentemente com o termo técnico de ser-para-si, é, pela sua natureza, o não-ser, o vazio, o nada. Também a sua atividade consiste, portanto, em fazer o vazio, em aniquilar, em devorar o ser. Para sustentar esta tese, Sartre analisa algumas atividades típicas da consciência como o desejar alguma coisa, o afirmar o valor ou a possibilidade de alguma coisa, o reconhecer a existência dos outros.

O desejar atesta que a atividade da consciência é um anular-se, uma falta de ser, já que o desejar não se explica senão como uma deficiência do ser que deseja, isto é, como uma necessidade de completamento.

O projetar-se nos possíveis, no qual consiste a maior parte da atividade da consciência, significa somente que ela é constituída pela falta de alguma coisa que a completaria. “O possível é aquilo que falta ao para si para que ele seja ele”, aquilo que falta ao sujeito para ser objeto e que, por isso, não existe senão como falta ou deficiência.

O mesmo acontece com o valor, que é tal enquanto não é: já que, mesmo quando se encarna ou é intuído em certos entes, está além deles e constitui o limite ou o termo ao qual eles tendem. O valor, como tal, jamais existe, ele está sempre além daquilo que existe: o seu ser consiste em ser o fundamento do seu nada, isto é, o fundamento daqueles atos ou daquelas situações que tendem para ele, mas nos quais ele, como valor, não está.

De modo semelhante a constatação da existência dos outros e uma negação de que ela seja a minha: esta negação é “a estrutura constitutiva do ser do outro”.

A NÁUSEA E A MORTE

A atividade aniquiladora da consciência desemboca necessariamente na náusea. Esta nasce do fato de que a consciência sempre encontra diante de si alguma coisa, alguma coisa demais. O sentimento da náusea foi agudamente examinado por Sartre na obra que traz este título, na qual ele mostra que o tédio, a náusea, é provocado pela superfluidade, pela absurda superabundância de realidade que existe nas coisas: “Eramos um grupo de existentes retidos e embaraçados em nós mesmos, não tínhamos a menor razão para estarmos ali, nem uns nem outros; cada um dos existentes confuso, vagamente inquieto, sentia-se de­mais em relação aos outros. Demais: era esta a única relação que eu podia estabelecer entre aquelas árvores, aquelas cancelas, aquelas pe­dras. Procurava em vão contar as castanheiras, situá-lasem relação à Velleda, comparar a sua altura com a dos plâtanos: cada um deles se furtava às relações nas quais eu procurava encerrá-los; sumida transbordava. Eu sentia a arbitrariedade destas relações ( . . . ); não tinham mais mordente sobre as coisas. Demais a castanheira ali diante de mim, um pouco à esquerda. Demais a Velleda. E eu, fraco, enlanguescido, obsceno, digerindo e cheio de pensamentos sombrios — também eu era demais”.

Houve quem comparasse, e com razão, o sentimento de náusea de Sartre com o sentimento da morte de Heidegger. Na filosofia do existencialista francês a náusea ocupa, de fato, o lugar que a morte ocupa na filosofia do existencialista alemão. Ambos vêem na temporalidade uma das estruturas fundamentais da vida humana. Ambos atribuem às estases da temporalidade (passado, presente e futuro) uma importância totalmente nova na história da filosofia. Mas, enquanto para Heidegger a estase mais importante é a morte (motivo pelo qual a vida humana é toda orientada para a morte), para Sartre a estase mais importante é a do presente, e o sentimento predominante do presente é o de náusea. Não se encontra nele aquela angústia por causa da morte, experimentada por aquele que sabe que o seu ser está continua­mente ameaçado de ser arrastado para o nada. Nele o que prevalece é o sentimento de quem está constantemente desgostoso das coisas que o cercam.

A LIBERDADE

O que mais distingue os homens dos outros seres é, como vimos, a consciência. Tem-se assim a impressão de que para Sartre a consciência é o constitutivo último essencial do homem. Pode ser verdade, mas Sartre não o diz: ele prefere afirmar que a essência do homem é a liberdade. Para sermos mais precisos, Sartre diz que aquilo que constitui (produz) a essência do homem é a liberdade, não vice versa. Com isso ele se opõe à concepção tradicional, que via na liberdade uma das propriedades da essência humana e que tinha uma prioridade ontológica sobre elas. Sartre é de opinião que esta concepção não explica como os indivíduos, usando a sua liberdade, formam personalidades tão profundamente diferentes; uns se tornam santos, outros assassinos; uns, avaros, outros pródigos; uns doutos, outros analfabetos. A personalidade, com todas as características da existência (essência) individual, é produzida pela liberdade, na qual é necessário, portanto, fazer consistir o constitutivo fundamental do ser humano.

Como constitutivo último, a liberdade não tem limites. “Eu estou condenado a ser livre. Isto significa que não se pode encontrar para a minha liberdade nenhum limite que não seja ela mesma; ou, se se preferir, que não temos a liberdade de deixarmos de ser livres”.

A liberdade não está vinculada a nenhuma lei moral; a sua única norma é ela mesma. Para a liberdade “todas as atividades são equivalentes ( . . .) No fundo é a mesma coisa embriagar-se na solidão ou conduzir os povos. Se alguma destas atividades é superior a uma outra, não o é por causa do seu escopo real, mas por causa da consciência que ela tem do seu escopo ideal; e neste caso o quietismo do ébrio solitário é superior à vã agitação do condutor de povos”.

Mas nem para Sartre a liberdade equivale à libertinagem. Liberdade absoluta só existe para o projeto fundamental, para a escolha originária, escolha absolutamente incondicionada. Todas as outras escolhas são condicionadas pela escolha originária, a qual, no entanto, pode ser modificada. A modificação do projeto inicial é possível em qualquer momento. “A angústia que, quando revelada, manifesta à nossa cons­ciência a nossa liberdade, atesta a modificabilidade perpétua do nosso projeto inicial”. Nós estamos constantemente ameaçados de termos anulada a nossa escolha atual, constantemente ameaçados de nos escolhermos e de nos tornarmos assim diferentes do que somos.

Tudo o que acontece no mundo remonta à liberdade e à responsabilidade da escolha originária; por isso nada do que acontece ao ho­mem pode ser tachado de inumano. “As mais atrozes situações de guerra, as piores torturas não chegam a criar nenhum estado de coisas inumanas. Não existe situação inumana: é somente pelo medo, pela fuga ou pelo recurso a comportamentos mágicos que eu decidirei sobre o que é inumano; mas esta decisão é humana, e serei eu o único responsável por ela”.

Se fui mobilizado para a guerra, esta guerra é a minha guerra, a minha imagem, e eu a mereço: “Eu a mereço, em primeiro lugar, porque poderia ter-me subtraído a ela pelo suicídio ou pela deserção; estas possibilidades últimas devem estar sempre presentes quando devemos enfrentar uma situação. Não me subtraindo a ela, eu a escolhi: talvez somente por falta de coragem, por fraqueza diante da opinião pública, por preferir certos valores aos da recusa a fazer a guerra. Trata-se, em todo caso, de uma escolha”.

Em A critica da razão dialética, Sartre vê no exercício da liberdade humana uma atuação da dialética hegeliana da tese, antítese e síntese, que ele chama de dialética constituinte, antidial ética e dialética constituída.

Na dialética constituinte considera-se a liberdade absoluta, absolutamente livre, não determinada por nenhuma causa: a liberdade se manifesta neste momento como práxis livre, como práxis livre constituinte.

Mas esta liberdade absoluta, sem nenhum condicionamento, não existe. De fato, o homem isolado, separado da sociedade, não existe: ele existe junto com os outros e cercado pelas coisas materiais. Por isso, a ação de cada um, a qual, em abstrato, é livre para se desenvolver, de fato não pode desenvolver-se fora das relações com os outros indivíduos e com a realidade material; a atividade do homem se desenvolve no âmbito do “prático-inerte”, como o define Sartre, e sofre as suas conseqüências. Neste âmbito ‘o homem não é mais livre, se por liberdade se entende a possibilidade de escolha, já que éobrigado a viver a condição sob a forma de exigência a ser satisfeita mediante a práxis”. O homem sofre continuamente a ação dos outros e dos objetos dos quais os outros se servem para agir sobre ele. Este é o segundo momento da dialética da liberdade, a antidialética, na qual a liberdade sofre o condicionamento absoluto.

Na dialética constituída dá-se a síntese dos dois primeiros momentos. Aqui a liberdade absoluta se revela “como necessidade da necessidade ou, se se preferir, como o seu oposto inflexível”.

DEUS

Como para Feuerbach e Nietzsche, também para Sartre Deus não tem existência real, mas é uma simples hipostatização dos ideais humanos.

No fim de L’être et le néant, Sartre afirma que “toda a realidade humana é uma paixão, uma vez que ela (a realidade humana) mira a perder-se para fundar o ser e, ao mesmo tempo, para constituir o Ser-em-si que escapa à contingência para ser o seu próprio fundamento, o Ens causa sui (o ‘Ser, causa de si’) que as religiões chamam Deus. As­sim a paixão do homem é oposta à paixão de Cristo porque o homem se perde enquanto homem para fazer nascer Deus. Mas a idéia de Deus e contraditória, e nós nos perdemos em vão: o homem é uma paixão inútil”.

A paixão do homem é ser-em-si, já que o ser-para-si (ou o ser da consciência) é um puro nada. Mas como desejo do ser-em-si (isto é do ser objetivo de fato), a consciência tende para o ideal de uma consciência que seja, com a simples consciência de si mesma, o fundamento do seu próprio ser-em-si. Ora, este ideal é o que se pode chamar Deus. “Pode-se dizer assim que aquilo que torna mais compreensível o projeto fundamental da realidade humana é que o homem é o ser que projeta ser Deus. Sejam quais forem os mitos e os ritos da religião considerada, Deus é sensível em primeiro lugar ao coração do homem como aquilo que o anuncia e define no seu projeto último e fundamental”.

O homem é fundamentalmente desejo de ser Deus. Deus não é senão este desejo mal sucedido. O em si do mundo e o para si da consciência se encontram num estado de perpétua ruptura com relação a uma síntese ideal que jamais existiu, mas que é sempre indicada, embora sempre impossível.