KARL JASPERS

04/09/2012 19:25

Karl Jaspers nasceu em Oldenburg, na Alemanha, aos 23 de fevereiro de 1883. Em 1913 obteve a habilitação para o ensino da psicologia. Laureou-se mais tarde em filosofia e foi por muitos anos professor desta disciplina em Heidelberg. Obrigado pelo regime nacional-socialista a deixar o ensino universitário, retomou-o somente em 1945, para transferir-se, dois anos depois, para Basiléia, onde ensinou e residiu até a morte, ocorrida em 1969.

Suas obras mais importantes são: Filosofia (em três volumes), Orientação filosófica do mundo, Explicação da existência, Metafísica, Razão e existência, A fé filosófica.

A reflexão de Jaspers tem o mesmo ponto de partida que a de Heidegger: a distinção entre “ser-em-situação” (Dasein) e “existência” (Existenz).

O “ser-em-situação é a realidade empírica que se mostra e se impõe a todos, filósofos ou não; é o dado puro e simples, o qual pode re­ferir-se a qualquer realidade, humana ou mundana, física ou psíquica. O ser-em-situação é tanto a vida temporal do homem como o desdobra­mento dos acontecimentos do mundo no tempo e no espaço; ele é, em suma, aquilo que comumente se entende por realidade de fato e que o cientista analisa para descobrir as suas modalidades e as suas leis. O ser-em-situação do homem pertence à mesma ordem que o ser-em-situação universal. Considerado pelo espírito no mesmo nível das coisas do mundo, torna-se também ele um “objeto” entre os outros, matéria a descrever, a estudar e a ensinar. Nascem assim a psicologia e as diversas disciplinas antropológicas, as quais vão colocar-se ao lado das outras ciências da natureza.

Mas o ser-em-situação não é o verdadeiro ser do homem, embora, no estudo da realidade humana, deva-se partir dele. O homem se encontra, de fato, sistematicamente fora de si, além de si mesmo. Este transcender a situação é a existência. Esta dimensão do homem não é conceituável nem exprimível por meio de idéias claras e distintas; nem por isso é menos real do que o “ser-em-situação”.“A existência não pode ser supressa pelo fato de não se poder obter dela um saber igual ao do Dasein”. Ela é, com efeito, aquilo que há de mais imediato e direto, de mais íntimo e pessoal em cada um; ela é aquilo em que “eu me sinto radicado” do modo mais profundo, aquilo que é mais inseparável de mim e mais incomunicável. Ela não é uma realidade suposta, deduzida, uma conclusão. Mas a existência não se apresenta como alguma coisa realizada, acabada: “Ela ainda não é, mas pode e deve ser; se ela atinge o ser — ou se falha — é resultado de escolha, de decisão; não se dá existência senão corno liberdade”. Mas, por mais independente, pessoal e irredutível que seja, a existência não vive fora do ser-em-situação; ela não pode nem deve isolar-se dele, já que, por força da sua condição natural, está ligada a ele. O ser-em-situação é o seu ambiente necessário e o seu material. A existência tem no ser-em-situação o seu ponto de apoio, os seus instrumentos de ação, a sua manifestação forçada. A existência é uma abertura através da realidade empírica do mundo. E, no entanto, esta abertura não conduz para fora do mundo: ela se realiza no mundo; se ela quisesse sair dele, cairia no vazio.

Existem dois perigos mortais para a existência: por um lado, o de dissolver-se, de perder-se no ser-em-situação como se ele fosse o seu verdadeiro ser, “acorrentando-se, p. ex., às coisas sensíveis, como se elas fossem decisivamente a sua vida”; por outro lado, o perigo de comportar-se como se o ser-em-situação não existisse, como se ele não tivesse nenhuma importância, nenhum significado. De um lado, o ser-em-situação, em si mesmo, isolado da existência, é uma coisa essencialmente in­completa, relativa, evanescente: uma ‘nulidade’. Do outro, premido pelo ser pessoal, o ser-em-situação adquire peso, valor absoluto, ‘im­portância infinita’. Apropriando—se dele livremente, a existência faz dele algo de próprio: torna-se uma coisa só com ele”.

Eu sou a existência na medida em que não me torno um objeto para mim mesmo. Pela existência eu me reconheço independente, mas sem condições para contemplar aquilo que chamo o meu ser. Vivo graças à sua possibilidade e sou eu mesmo somente pela sua realização.

Existe, porém, um horizonte forçado no qual se move o meu eu, o meu Dasein: é o horizonte do ser. Ele me rodeia de todos os lados, é o onicompreensivo (das Umgreifende).

O  ser é acessível a nós pala compreensão (Verstehen). Esta compreensão existencial não é um simples apanhar, nem um conviver, no sentido de Dilthey, mas um viver: e o viver (Erleben) no devir e o devir no viver ; é uma experiência na qual a distinção entre sujeito e objeto desaparece, sentindo-se o eu um e outro, porque a experiência da realidade empírica é ao mesmo tempo certeza da união com a transcendência. Nesta experiência, existência e ser são a mesma coisa como, na esfera do espírito, pensar e ser são também a mesma coisa.

O problema do ser está indissoluvelmente ligado ao da verdade. Esta, segundo Jaspers, é alcançada por meio da colaboração, a qual, por sua vez, pressupõe a comunicação. Por comunicação não se deve entender comunhão no sentido sociológico; antes, a “massa” é chamada por ele de “ser sem existência”. A existência se realiza, com efeito, mais na solidão do indivíduo, mas somente na medida em que a sua solidão entra em comunicação com a solidão dos outros. A solidão do indivíduo se torna então autêntica.

A existência que se exerce na comunicação é uma existência histórica e, por isso, ligada ao tempo. Também a verdade é histórica: e um processo que nunca atinge o seu termo. Daqui a conclusão, mais vezes acentuada por Jaspers, da impossibilidade para a mente humana de atingir certezas absolutas em qualquer ordem de coisas, especialmente na ordem metafísica. A verdade absoluta é a meta última sempre perseguida pela filosofia, mas nunca atingida. E impossível, portanto, elaborar, com a razão filosófica, uma doutrina sobre Deus. Todo esforço humano para ultrapassar o mundo da experiência só pode conseguir imitar este mesmo mundo, produzindo uma cópia do ser-em-situa­ção e projetando-a no além: “A razão não pode pensar a transcendência a não ser como Dasein no próprio plano do mundo (. ..) A transcendência é então o outro Dasein, o do além, o que não se acha aqui”. Pensar deste modo é “diminuir Deus”.

A razão — que não pode atingir a verdade absoluta — se encontra em um mundo no qual muitas doutrinas podem apresentar pretensões de verdadeiras. Esta situação, segundo Jaspers, não obriga a abandonar a comunicação; antes, a confiança na verdade dos outros faz nascer a virtude da “humanidade”. Por outro lado, qualquer pretensão de certeza absoluta, da parte de uma filosofia ou de uma religião, torna-se ipso facto uma « não-verdade”, e a crença numa única verdade torna impossível a genuína comunicação e leva ao fanatismo.

Notemos que, apesar das aparências, a tendência da filosofia de Jaspers não é atéia, mas cristã, de um cristianismo protestante, que se recusa a reconhecer à razão humana qualquer capacidade para as verdades religiosas.

Jaspers afirma, em todo caso, que, embora não podendo atingir a Deus, a razão humana é sistematicamente impelida além dos limites da sua experiência, para a transcendência. Isto acontece principalmente naquelas situações que ele chama “situações-limite” (Grenz-Situatio­nen). São “situações como a de estar sempre em uma situação, a de não poder viver sem luta e sem dor, a de dever assumir uma irremediável culpabilidade e especialmente a de dever morrer ( . . . ) Elas não sofrem mudanças substanciais, mas somente fenomênicas; em relação ao nosso ser-em-situação (Dasein), elas têm o caráter de definitividade. Não são transparentes; são imutáveis, definitivas, incompreensíveis, irredutíveis, intransformáveis, podendo ser somente explicáveis. No nosso ser-em-situação não nos é dado descobrir nada além delas. Elas são como um recife contra o qual batemos e naufragamos”.

De todas as situações-limite a fundamental é a morte. A este respeito, Jaspers distingue entre situação-limite geral do mundo e situação-limite especificamente individual. A morte é, primeiramente, uma situação-limite geral do mundo: tudo o que é real é mortal, sem nenhuma exceção. Toda experiência, todo estado, todo acontecimento imediatamente se desvanece, “e a série se estende assim até à existência do nosso planeta e se prolonga infinitamente”. Em segundo lugar a morte é uma situação-limite especificamente humana: ela é o “limite-sempre-retornante” que atormenta o homem e o corrói no seu íntimo logo que ele se constitui como autoconsciência pessoal. “Existe sempre uma relação, única no gênero, entre o homem e a sua própria morte, relação que não é comparável com nenhuma experiência geral ou particular da morte do outro, do próximo”. A morte dos outros eu a posso pensar, crer, imaginar. Posso até ter o mais completo conheci­mento científico, histórico, filosófico da morte em geral. Mas, com relação a mim mesmo, existe alguma coisa no meu íntimo que não a considera necessária, que não a considera possível. Por outro lado, a razão não oferece nenhuma prova de que o homem possa evitar esta situação-limite: “Para o homem que tem consciência da situação-limite da morte, o intelecto se torna uma coisa sem sentido para a consideração da imortalidade: ele, por sua natureza, permanece preso ao limitável, ao finito”.

A única faculdade humana capaz de revelar o mistério da morte é, segundo Jaspers, o amor. Ele remove até a situação-limite da morte e se põe em comunicação com quem está morto. Tal comunicação me dá a certeza de que a morte não é um báratro, uma voragem que me engole ou um abismo no qual me precipito. O que se dá é o contrário: é como se, por seu intermédio, eu me reunisse às existências com as quais me comunicava do modo mais íntimo. “O salto (da morte) é como o nascimento de uma nova vida. A morte é absorvida pela vida. A vida se torna garantia da verdade da comunicação, a qual remove a morte porque a vida se realizou como a comunicação requeria e re­quer agora. A morte cessa então de ser um abismo vazio. E como se, não mais abandonado, me agarrasse à existência que se achava na mais íntima comunicação comigo”. Jaspers conclui que “a imortalidade não é uma parte do nosso saber, mas a riqueza do nosso amor”.