MICHEL FOUCAULT

04/09/2012 19:32

Michel Foucault nasceu em Poitiers aos 15 de outubro de 1926. Fez seus estudos na Ecole Normale Supérieure de Paris. As suas intensas e múltiplas experiências culturais (medicina, filosofia, psicologia, história), amadurecidas durante permanências na Suíça, na Polônia e na Alemanha e através do estudo aprofundado de autores como Georges Dumézil, Jean Delay e Maurice Blanchot, permitiram-lhe colocar-se bem cedo entre os maiores protagonistas da grande revolução cultural e filosófica do último decênio, denominada estruturalismo.

Atualmente é professor no Centro Universitário Experimental de Vincennes e ocupa a cadeira de história dos sistemas de pensamento no Collège de France.

Dentre suas obras mais importantes recordemos História da lou­cura (1960); Palavras e coisas (1967); Arqueologia do saber (1969). Merecem ainda ser mencionadas: Maladie mental et psychologie (1954); Histoire de la folie à l’áge classique (1961); Naissance de la clinique (1963).

Como se pode ver facilmente pelos títulos, as primeiras obras de Foucault são dedicadas à história da medicina, que ele procura reconstituir não em sentido cronológico, mas em sentido crítico, tentando estabelecer as condições primordiais, transcendentais, estruturais, das quais se desenvolveu a medicina. Esta pesquisa levou Foucault a concluir que a possibilidade última da medicina está ligada “ao fato de que existe a linguagem e de que, nas inumeráveis palavras pronunciadas pelos homens, tomou corpo um sentido que nos excede, que espera, na obscuridade, a nossa tomada de consciência para vir à luz e pôr-se a falar”. Disso tirou ele uma lição epistemológica da maior importância: aquilo que o homem vê e descobre depende de um campo determinado que a sua problemática do momento lhe impede de ver.

Da história da medicina, que lhe mostrara como era possível conduzir uma análise estrutural dos produtos da cultura humana, Foucault passou para uma pesquisa epistemológica geral, voltada para a descoberta das estruturas fundamentais do conhecimento que estão na base dos vários momentos da história da civilização ocidental moderna. Tal o objetivo das suas três obras mais importantes. Nelas ele desenvolve uma teoria estruturalista que se distancia da de Lévi-Strauss em dois pontos importantes.

— Foucault considera a análise estrutural da linguagem de de Saussure não como um modelo a transferir para outros campos, como fez Lévi-Strauss, mas como um método a ser retomado e desenvolvido no campo da própria linguagem. Por isso ele levará adiante a análise da linguagem começada pelo lingüista suíço, deslocando-a, porém, do nível dos fenômenos para o dos enunciados.

— Foucault concentra a sua atenção mais nas sociedades evoluí­das, modernas, do que nas primitivas, selvagens, como fizera Lévi-Strauss.

Em Palavras e coisas, Foucault se propõe demonstrar que cada período da cultura tem o seu a priori histórico, que consiste no substrato comum a todas as ciências, artes e ideologias, e que condiciona o pen­samento e a atividade dos homens de tal período. Ele usa o termo epistéme para significar o campo particular, o espaço de ordem no qual, em dada época, formam-se tais a priori históricos. Segundo Foucault, em cada época histórica a epistéme é única, ao passo que a sua imagem se reflete inevitavelmente, com nuanças diferentes, em todos os campos aos quais se aplica o pensamento humano, porque ela se encontra sempre na origem do pensamento. Outra característica da epistéme consiste em constituir um sistema coerente, porque ela é essencialmente uma estruturas sendo, além disso, um sistema fechado em si mesmo, pelo quê não é possível a passagem de uma epistéme a outra. Segue-se que o revezamento das weltanschauungen (“cosmovisões”) que caracterizam os vários períodos históricos é provocado por uma ruptura ou pelo fim de uma epistéme e pelo surgir de outra, num âmbito de fenômenos que são quase clandestinos, porque o seu influxo, apesar de proeminente, nunca é percebido pela razão coletiva de modo explícito. Por exemplo, todas as diferenças entre a cultura do século XVI e a do século XVII estão virtualmente contidas na passagem de uma linguagem ‘~n­tendida como sinal natural das coisas para uma linguagem entendida como representação e discurso.

Estabelecidas estas premissas gerais em torno das propriedades do a priori histórico que condiciona todas as manifestações culturais de uma época, Foucault se empenha seriamente, em seu livroPalavras e coisas, em descobrir a epistéme dos principais períodos da história moderna, da Renascença aos nossos dias. Para isso ele explora as linhas gerais do desenvolvimento comum a todas as ciências num dado período. O que ele nos oferece é uma espécie de pré-história da ciência do Ocidente nos tempos modernos, tendo como temas principais as situações da filosofia e das ciências do homem, as relações entre linguagem e representações, e a situação do homem. Ele dirige a sua atenção preferencialmente para as obras de autores menos conhecidos, para as humildes e perseverantes pesquisas de pessoas que escreveram sobre literatura e gramática, sobre economia e ciências naturais; e o principal indício do lugar da latente epistéme ele o encontra na relação, diferente de idade para idade, entre palavra e coisa.

Em Arqueologia do saber, Foucault passa resolutamente de uma pesquisa estrutural das várias atividades e formas de cultura para um estudo sistemático da linguagem segundo critérios estruturalistas. Objeto de suas pesquisas não são, porém (como para de Saussure), os fone­mas, mas os enunciados, que ele examina não para descobrir as intenções do autor, nem para compreender o seu significado, mas para fazer emergir a sua absoluta originalidade em relação aos outros eventos lingüísticos que os precedem e os seguem e, ao mesmo tempo, para fazer uma descrição pura de tais eventos, com a finalidade de descobrir a unidade que está na sua origem.

Para delimitar com precisão o campo da sua pesquisa, Foucault faz duas importantes distinções.

Em primeiro lugar, a distinção entre análise da língua e análise dos enunciados (ou eventos discursivos). A primeira define as regras que permitem eventualmente formar enunciados diferentes dos iniciais; é um conjunto finito de regras que autorizam um número infinito de realizações; constitui, portanto, um sistema de enunciados possíveis. A segunda tem por objetivo explorar “sooconjuntosemprefinito e atualmente limitado das seqüências lingüísticas que tenham sido formuladas; podem também ser inumeráveis e, pela sua quantidade, superar toda capacidade de registro da memória ou de leitura; apesar disso, ela é um conjunto finito. O problema posto pela análise da língua a propósito de qualquer fato de discurso é sempre o seguinte: com base em quais regras foi construído este enunciado e, por conseguinte, com base em quais regras poderiam ser construídos outros enunciados semelhantes? A descrição dos eventos do discurso põe uma pergunta completamente diferente: como sucedeu o aparecer deste enunciado e não de outro?”.

Outra importante distinção que deve ser levada em conta, quando se empreende a análise estrutural dos enunciados, é a que existe entre história do discurso e análise do campo discursivo. Na primeira o discurso “e tratado de modo que tenta encontrar, além dos enunciados, a intenção do sujeito que fala, a sua atividade incônscia, o que ele quis dizer, ou o mecanismo incônscio que, contra a vontade dele, veio à luz em meio àquilo que ele disse ou por entre as fendas quase imperceptíveis das suas palavras manifestas. E necessário, em cada caso, re­construir outro discurso, encontrar a palavra muda, o murmúrio inexaurível que anima do interior a voz que se ouve, reintegrar aquele texto imperceptível e impalpável que se estende através dos interstícios das linhas escritas e que, às vezes, as põe em desordem. Na segunda distinção procura-se “apreender o enunciado na limitação e na singularidade do seu evento; determinar as condições da sua existência, fixar com a máxima exatidão os seus limites, determinar as suas correlações com os outros enunciados que podem ter ligação com ele, mostrar quais as outras formas de enunciação que ele exclui. Não se procura, de modo algum, sob o discurso manifesto, o imperceptível sussurro de outro discurso; deve-se mostrar por quais razões ele não pode ser diferente do que é, em que sentido exclui qualquer outro e como, no meio dos outros e em relação a eles, ocupa uma posição que nenhum outro pode­ria ocupar. O problema típico desta análise pode ser formulado assim:

qual é a existência singular que vem à luz naquilo que se diz e não em outra coisa?”.

Precisados deste modo os limites dentro dos quais pretende manter a análise estrutural dos enunciados, Foucault determina com mais exatidão as tarefas desta análise do modo seguinte: “A análise enunciativa não se pode voltar senão para coisas ditas, para frases que foram realmente pronunciadas ou escritas, para elementos significantes traçados ou articulados e mais precisamente, para aquela singularidade que os fez existir, que os oferece ao olhar, à leitura, a uma eventual reativação, a mil usos ou transformações possíveis, não, porém, como as outras coisas. Ela pode referir-se somente aperformances verbais realizadas, uma vez que as analisa ao nível da sua existência: descrição das coisas ditas, precisamente enquanto ditas. A análise enunciativa é, pois, uma análise histórica, mas mantém-se acima de qualquer interpretação: às coisas ditas não se pergunta o que escondem, o que foi dito nelas e o não dito elas ocultam a contragosto, o emaranhado de pensamentos, de imagens ou de fantasmas que habita nelas; o que se lhes pergunta é como existem, que coisa significa para elas terem sido manifestadas, terem deixado traços e talvez permanecerem como estão para uma eventual reutilização; que coisa significa para elas terem aparecido justa­mente elas e não outras no lugar delas”.

O que Foucault se propõe fazer é, em substância, uma atenta análise fenomenológica dos enunciados: “Descrição das coisas ditas, precisamente enquanto ditas”. Ele quer fazer, no que se refere à linguagem, o que Husserl fez em relação ao pensamento, e Heidegger em relação ao ser (mais exatamente, em relação ao Dasein). Mas esta pretensão não seria absurda no caso da linguagem, que é uma realidade intencional e, portanto, essencialmente correlativa? Foucault rejeita esta objeção. Ele reconhece que a estrutura significante remete sempre a alguma coisa diferente e que há sempre objetos designados nela: “A linguagem parece sempre povoada pelo outro, pelo alhures, pelo distante, pelo longínquo; ela é minada pela ausência”. E, no entanto, ele é de opinião que “se se quer descrever o nível enunciativo, é necessário tomar em consideração esta própria existência, interrogar a linguagem não na direção para a qual ela remete, mas na dimensão que a dá; negligenciar o poder que ela tem de designar, de nomear, de mostrar, de fazer aparecer, de ser o lugar do sentido e da verdade, e de deter-se no momento — logo solidificado, logo preso no jogo do significante e do significado — que determina a sua existência singular e limitada. Trata-se de suspender, no exame da linguagem, não somente o ponto de vista do significado (agora é costume fazê-lo), mas também o do significante, para fazer aparecer o fato que, aqui ou ali, esteja em relação com campos de objetos e com sujeitos possíveis, em relação com outras formulações e eventuais reutilizações da linguagem”.

Mas a qual resultado pode chegar semelhante análise fenomenológica dos enunciados? Talvez ao isolamento de eventos discursivos inconfundíveis? Não é esta certamente a intenção de Foucault. A sua pesquisa não é orientada para o atomismo lingüístico, mas para o estruturalismo. O que ele procura é a explicação última do agrupar-se de certos enunciados em unidade de modo a constituírem umaformação discursiva; ele quer saber, a propósito daquelas grandes famílias de enunciados que se impõem aos nossos hábitos e que são designadas como a medicina, a economia, a gramática, em que se baseia a sua unidade. Ele quer descobrir, de modo particular, qual é o princípio de unificação daquelas zonas discursivas obscuras, não tão bem consolidadas para merecerem o nome de ciência, mas que, apesar disso, já fazem parte da esfera do saber como a alquimia, a frenologia, a rabdomância, o espiritismo e todas aquelas filosofias obscuras “que entulham as literaturas, a arte, as ciências, o direito, a moral e até mesmo a vida cotidiana dos homens”, das quais Foucault já se ocupara em Palavras e coisas e em outras obras anteriores, e às quais, na Arqueologia do saber, chama de positividade. Ele se propõe mais precisamente “evidenciar as condições de emergência dos anunciados, a lei da sua coexistência com os outros, a forma específica do seu modo de ser, os princípios com base nos quais eles subsistem, transformam-se e desaparecem”.

Segundo Foucault, o princípio supremo de unificação dos enunciados não é o mundo das coisas, nem o sujeito pensante, o eu, mas aquilo que ele chama arquivo e que define assim: “O arquivo é antes de tudo a lei daquilo que pode ser dito, o sistema que governa o aparecimento dos enunciados como eventos singulares. O arquivo é também aquilo que faz com que todas as coisas ditas não se amontoem ao infinito em multidão amorfa, não se inscrevam numa linearidade ininterrupta e não desapareçam somente em conseqüência de eventuais acidentalidades externas, mas se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se conservem ou se atenuem segundo regularidades específicas (. . . ) O arquivo é aquilo que diferencia os discursos na sua múltipla existência e os especifica na sua duração ( ...) Ele faz com que apareçam as regras de uma prática que permita aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, modificarem-se regularmente. Ele é o sistema geral da formação e da trans­formação dos enunciados”.

Foucault dá à disciplina que tem por função específica estudar o arquivo a designação de “arqueologia do saber”. O seu programa é o seguinte: a) Definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos enquanto prática que obedecem a regras. Em outras palavras, a arqueologia não trata o discurso como documento,mas considera-o, na sua própria densidade, como monumento; b) o seu problema não é encontrar a transição contínua e insensível que, em passagens graduais, liga os discursos com aquilo que os precede, circunda-os e os segue, mas defini-los na sua especificidade; c) a arqueologia não pro­cura restaurar aquilo que pôde ser pensado, querido, ambicionado, experimentado, desejado pelos homens quando preferiam o discurso; ela não é o retorno ao segredo da origem, mas a descrição sistemática de um discurso-objeto, d) as áreas do discurso ideais para a pesquisa são as de transição de uma época para outra; a faixa ótima é aquela que se situa entre a nossa época e a que a precedeu imediatamente: “A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada, próxima de nos, mas, ao mesmo tempo, diferente da nossa atualidade, região que é a orla do tempo que circunda o nosso presente, está acima dele e o indica na sua alteridade; ela é aquilo que está fora de nós e nos delimita. A descrição do arquivo desenvolve as suas possibilidades (e o domínio das suas possibilidades) a partir dos discursos que mal cessaram de ser nossos.

Juízo sobre o estruturalismo

Para julgarmos corretamente o estruturalismo devemos distinguir entre metodologia científica, filosofia da linguagem e filosofia do homem.

Julgamos que, entendido como método científico, o estruturalismo pode ser aplicado ao estudo do homem, contanto que não se esqueçam os problemas limitados aos quais ele está em condições de fazer frente na qualidade de método científico e se evite qual4uer pretensão que tenha caráter de universalidade, porque ela acabaria sempre e inevitavelmente como redutiva. Em particular, parece-nos legítima a tentativa de explorar estruturalmente a linguagem humana, não só ao nível dos fonemas, como fizeram os lingüistas, mas também ao nível dos enuncia­dos e das formações discursivas. De fato, não se vêem bem os motivos pelos quais estes produtos do agir humano devam ser excluídos dos esquemas da cientificidade e pelos quais não se deva consentir que sejam estudadas as suas estruturas fundamentais, isto é, as regras de sua com­posição e transformação. Por outro lado, a oportunidade de uma pes­quisa estrutural nestas esferas de atividade é confirmada pelos estudos de Lévi-Strauss, relativos às culturas primitivas, e pelos de Foucault, relativos às culturas modernas. O primeiro mostrou que as estruturas dos primitivos são substancialmente idênticas às nossas; o segundo fez ver a importância notável da pesquisa nas áreas discursivas menores, para a compreensão de uma determinada época.

Como filosofia da linguagem, o estruturalismo tem o mérito de ter mostrado que a linguagem não é aquele meio fluido, arbitrário, convencional, sempre à nossa mercê, do qual falaram muitas vezes os fi­lósofos do passado; mas que tem uma consistência estrutural própria e valores e significados até agora insuspeitados. Parece-nos, por isso, parcialmente justificada a inversão da posição cartesiana, que absolutizava o cogito (“penso”). E verdadeira em larga escala a tese do estruturalismo segundo a qual, na linguagem, eu não penso, mas sou pensado; não falo, mas sou falado; não ajo, mas “sou agido”.

Mas consideramos absolutamente inaceitável uma análise do discurso humano de tipo coisístico como a que pretendem fazer os estruturalistas, porque a linguagem é uma realidade essencialmente relativa a outras, é essencialmente intencional: ela remete sempre um sujeito que fala, a uma coisa da qual se fala, a outras pessoas às quais se dirige quem fala. Considerá-la unicamente em si mesma, prescindindo-se do significado, do significante e do interlocutor, seria tão absurdo como pretender compreender a figura do pai sem as da mãe e do filho.

Mas as nossas reservas mais graves se referem ao estruturalismo como filosofia do homem. Os estruturalistas são realmente assaltados pela tentação de transformar o módulo linguístico de princípio hermenêutico da antropologia em princípio arquitetônico: em vez de estudarem as outras dimensões do homem à luz dos resultados que a análise estrutural conseguiu no estudo da linguagem, eles tendem a construir toda a antropologia sobre a base de estrutura lingüística. Temos assim no estruturalismo uma absolutização da dimensão linguística, como em Marx tivemos uma absolutização da dimensão econômica e em Hegel. uma absolutização da dimensão lógica. E os resultados não são menos nefastos. Embora trilhando caminhos diferentes dos de Marx e Hegel (e, poderíamos acrescentar, de Spinoza e Schopenhauer), o resultado final das pesquisas de Lévi-Strauss, de Foucault e dos outros estruturalistas não difere em nada dos deles: mais uma vez o homem é reduzido a simples peão de um grande jogo, o do espírito incônscio (como em Hegel ele o era do absoluto; em Marx, da economia; em Spinoza, da substância e em Schopenhauer, da vontade). O indivíduo, não obstante todas as aparências de liberdade, move-se segundo as regras rígidas e indeclináveis das estruturas, sem possibilidade de libertar-se delas. Mas estas conclusões, que estão em antítese com a experiência pessoal (a experiência interior da liberdade que todos têm em si), fa­zem nascer a suspeita de que a tese dos estruturalistas seja arbitrária e infundada, conseqüência de um novo positivismo, de uma ulterior revivescência do cientismo filosófico.