O DIVINO PLATÃO

07/09/2012 11:58


O DIVINO PLATÃO

A GNOSIOLOGIA DE PLATÃO. 

Cronologicamente não começou Platão sua filosofia pelas teses gnosiológicas. Mas ele mesmo foi descobrindo aos poucos sua prioridade sistêmica com referência aos assuntos morais e outros.

As teses gnosiológicas se encontram nos mais diversos Diálogos de Platão. Mas importa destacar que o tema começou a se acentuar no início do período acadêmico (da fundação da Academia em 387 à 380 a.C.), de quando são Górgias, Protágoras, Ménon.

Importam sobretudo os Diálogos do período médio (dos anos 380 a 365 a.C.), de quando são Teeteto, Menon, Fedro, República, Parmênides (vd 59).

Finalmente, fora do texto de Platão, apresentam importância as observações feitas por Aristóteles.

Usando uma linguagem atual, as teses gnosiológicas do platonismo são as seguintes:

Dogmatismo (contra o ceticismo);

Inteletualismo (contra o sensismo sofista, o qual negava a distinção específica entre inteligência e sentidos);

3) Racionalismo (contra o empirismo ou positivismo, defendendo contra este o conhecimento puramente racional, como por exemplo o dos primeiros princípios ou axiomas);

4) Racionalismo radical (contra o racionalismo moderado que será a posição de Aristóteles), desvinculando o conhecimento puramente racional dos empíricos, para firmar a tese (seguida depois também por Plotino, Agostinho, Descartes), de que o conhecimento puramente racional mencionado surge com autonomia da intuição sensível.

 

I - Dogmatismo, contra o ceticismo.

Contra o ceticismo dos sofistas e mesmo dos heraclíteos, Platão admitiu a certeza

Do conhecimento. Não colocou ainda a questão exaustivamente e nem a colocou com precisão.

Com os sofistas debateu Platão o relativismo. Faz concessões por causa do movimento das coisas, mas não no todo.

Debate o problema pela boca de Sócrates e de Teeteto, em diálogo:

"Sócrates: Volvamos, Teeteto, à questão de princípio, e procura dizer-me o que é conhecimento (outros traduzem, que é ciência)?

Teeteto: Parece a mim, desde logo, que a pessoa que sabe se dá conta sensivelmente de que sabe e, tal como o entende agora, o conhecimento não é outra coisa que a sensação.

S.: Realmente me parece que encontraste um conceito nada desprezível do conhecimento, que já fora antes formulado por Protágoras. Ele disse o mesmo que tu, ainda que com outras palavras: Disse em certo tópico que "o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto o são, das que não são, enquanto o não são" [Frag., 1, Diels].

T.: Sim, eu o li muitas vezes.

S.: Não disse, em verdade, que as coisas são para mim, tal como me aparecem, e para ti, também como te aparecem, não obstante sermos homens, eu e tu?

T.: Disse isto exatamente.

S.: É natural que um homem sábio não faça afirmações gratuitas. Sigamos, por conseguinte, seu desenvolvimento. Não ocorre, as vezes, que o mesmo sopro de vento faz, a um, tiritar de frio, e, a outro, não? Que a um acaricia ligeiramente, e a outro de maneira pronunciada?

T.: De fato.

S.: Que será então o vento em si mesmo? Diremos que é frio, ou que não é frio? Ou daremos razão a Protágoras, que é frio para aquele que tirita e que não o é para outro?.

T.: Sim, logicamente.

S.: E nesta aparência consistirá o conhecimento?

T.: Claro que sim.

S.: Então aparência e sensação são a mesma coisa, para o calor como para os demais estados análogos. Porque as coisas parecem ser tal como cada um as sente.

T.: Assim parece.

S.: Só há, pois, sensação do que é, e sensação verídica do que constitui conhecimento.

T.: Não há dúvida.

S.: Admitiremos, pelas Graças, que este Protágoras era um compêndio de sabedoria, que falava enigmaticamente às gentes e a nós mesmos, enquanto que a seus discípulos ensinava a verdade envolta no mistério?

T.: Que pretendes dizer com isto, Sócrates?

S.: Explico-te. Como o que é em si e por si nada é, não há coisa alguma que se possa expressar com exatidão. Supõe, por exemplo, que tu consideras algo como grande, nada impede que apareça como pequena. Igualmente, coisa pesada, que se não mostre como leve. Em tudo ocorre exatamente isto, porque de nada se pode afirmar a unidade nem qualidade individual alguma. Tudo o que nós dizemos que é, é um resultado da translação da mescla e do movimento mútuos; resulta que nossa afirmação é falsa, porque jamais algo é, mas tudo está em devir. Todos os sábios, uns depois dos outros, com exceção de Parmênides, chegaram a esta conclusão. Trata-se de Protágoras, Heráclito e Empódocles, e, entre os poetas, os seus maiores representantes, Epicarmo, da comédia, Homero, da tragédia. Neste sentido seja lembrado o que disse Homero: O Oceano, gerador dos Deuses e sua mãe Thetis. Isto prova que todas as coisas são produto da corrente e do movimento. Não acreditas que vem dar nisto?

T.: Parece-me.

S.: Que réplica se poderia opor a este exército que dirige o caudilho Homero?

T.: Seria difícil encontrá-la.

S.: Desde logo, Teeteto, porquanto há razões suficientes que apoiam esta opinião, a saber que a semelhança do ser e do devir resulta possível graças ao movimento, enquanto que a do não-ser e do morrer resulta da calma. O calor e o fogo são produto da trasladação e da fricção, sendo ambos movimento. Acaso não consideras que o fogo seja gerado desta maneira?

T.: Claro que sim.

S.: A linhagem dos seres vivos tem certamente estas causas em sua origem.

T.: Não poderiam ser outras.

S.: Vejamos, - acaso não se destrói a normal constituição do corpo pela calma e moleza, enquanto a ginástica e o movimento buscam sua manutenção.

T.: Sim.

S.: Que mais ocorre com a alma? Não seriam o estudo e o exercício, autênticos movimentos, pelos quais adquire os conhecimentos e a conservam em seus estado e a tornam melhor? Pela inversa, não é a calma, ou falta de exercício e de estudo, a que o dificulta de aprender, inclusive lhe faz esquecer o já aprendido?

T.: Fora de qualquer dúvida.

S.: O movimento é, portanto, um bem, para a alma, como para o corpo; o contrário não.

T.: Assim parece.

S.: Seria mister lembrar que a calma e a bonança do mar, e todo os estados semelhantes, e ainda as diversas modalidades de repouso causam decomposição e morte, enquanto que as demais favorecem a conservação? Teria que completar tudo isto lembrando que Homero se limita ao Sol quando fala da cadeia de ouro, mostrando que enquanto se move a esfera terrestre e o Sol, tudo é e tudo conserva seu ser, entre os deuses e entre os homens, e que pelo contrário se tudo ficasse imóvel, dar-se-ia a destruição e, como já se disse, a reversão de todas as coisas?

T.: Parece-me, Sócrates, que tudo é como o explicas.

S.: É assim, na verdade, que se devem considerar as coisas, querido amigo. Isto que, para os olhos, chamas cor branca, nem é cor branca em si, nem o é fora, nem diante de teus olhos, nem sequer em lugar algum. Se fosse deste modo, deveria ter seu posto e nele se manteria, e nem variaria continuamente.

T.: Como explicas isto?

S.: A partir da razão exposta há pouco, admitindo portanto que não há nada em si e nem por si, se comprova que a cor branca, como a negra, como qualquer outra, resulta da aproximação dos olhos é esta trasladação própria que lhes dá origem. Temos então, que toda a cor existente não é o que se aplica, nem o que é aplicado, porém algo intermédio, adequado a cada um. Acaso poderias afirmar que a cor, tal como aparece a ti, também aparece a um cachorro ou a qualquer outro animal?

T.: Por Zeus, não é a minha opinião.

S.: Deveremos dizer, portanto, que não há semelhança alguma entre o que percebe outro e o que percebes tu? Acaso poderias mantê-lo com firmeza? Ou terias ainda que afirmar que nada é idêntico para ti, já que nem tu o eras contigo mesmo?

T.: Inclino-me para o último.

S.: Se aquilo com que nós nos medimos ou o que tocamos, e grande, branco, ou quente, assim permanecerá sem experimentar mudança. Se alguma das coisas que medimos e tocamos incorresse naquelas alterações, não se deverá atribuí-lo a algo que se aproximasse e se modificasse, mas ao fato de que ela mesma se alterasse. Bem se vê, querido, que estas afirmações apressadas acabam sendo estranhas e ridículas. Protágoras, e quantos o seguem, as julgariam da mesma maneira.

T.: Que é o que pretendes dizer e a que se refere?

S.: Seja um pequeno exemplo e alcançarás melhor minhas razões. Suponha que tenhamos seis tábuas; se puseres outras quatro ao lado, diremos que aquelas são mais do que estas quatro e que as superam em uma metade. Mas, se forem doze, diremos que são menos, exatamente e a metade menos. Não acredito haver outra maneira de argumentar. Acaso poderias apresentar uma?

T.: Eu, não.

S: Senão vejamos, que responderias à pergunta que formulavam Protágoras e seus seguidores - "há possibilidade de que algo seja maior ou mais numeroso, se realmente não sofre aumento?"

T.: Se tivesses que responder, Sócrates, com exatidão ao que suponho adequado à pergunta, daria uma negativa. Mas, se se trata de referir-se à questão anterior, ressalvando-me de contradição, diria simplesmente que sim.

S.: Por Hera, divinamente bem dito. Tua resposta afirmativa destaca o dizer de Eurípides: nossa língua poderá ser irrefutável, porém não o nosso pensamento.

T.: Na verdade.

S.: Se dispuséssemos de homens hábeis e sábios, só necessitaríamos, em relação com todos os segredos do pensamento, de oferecermos uma probabilidade mútua e acertarmos sofisticamente em um embate em que reluzissem os argumentos de ambos. Nossa condição de simples particulares nos conduz, entretanto, a considerar em primeiro lugar o que podem ser os objetos em que pensamos, através de sua relações mútuas, se por ventura mantêm, ou não, em nós alguma espécie de concordância.

T.: É pelo menos, o que desejo.

S.: E eu. Com isso, com muita calma e tempo, retornamos ao nosso exame. Sequer o mau humor porá impecílios às críticas que façamos aos nossos pontos de vista. Com referência à primeira, admitamos a afirmativa, conforme acredito, de que nada pode ser maior, nem menor, quer em volume, quer em número, se permanece igual a si mesmo. Acaso não é assim?

T.: Sim.

S.: Com referência à segunda, digamos que aquilo a que não se acresce e nem tira coisa alguma, nem aumenta, nem diminui, senão que permanece sempre igual.

T.: Desde logo.

S.: Em terceiro lugar, afirmamos: o que antes não era, é impossível que seja depois, de sorte que não chega a ser.

T.: Assim parece.

S.: Nestas três condições, penso eu" (Teeteto 151 d - 155 a).

 

II - O Inteletualismo platônico.

Contra o sensismo, Platão estabeleceu uma pronunciada distinção entre sentidos e inteligência. Nisto retomou doutrinas que vêm dos eleatas e mesmo dos pitagóricos, tendo na oposição os sofistas e os materialistas cirenaicos. Ao mesmo tempo que estabeleceu a diferença dos dois tipos de conhecimento, afastou também o relativismo.

Observavam os eleatas que a inteligência percebe o ser, que se lhe apresenta como imóvel, ou imutável, ao passo que o mundo captado pelos sentidos é móvel, múltiplo, fugaz, donde concluíram que os sentidos são ilusórios e distintos da inteligência.

É evidente que a posição dos eleatas, embora extremista, vem de encontro a Platão. Parte este do princípio de que a ciência é um fato inegável, como se vê em Teeteto e Sofista nas discussões tidas com eleatas e sofistas.

Em Teeteto, se refutam três definições de ciência: uma a identifica com a sensação (Protágoras), outra com a opinião verdadeira, outra com a opinião verdadeira acompanhada de razão.

Em Sofista, - além de definir que é um sofista, - refutou Platão a imobilidade do ser estabelecida pelos eleatas (Xenófanes, Parmênides, Górgias), afastando com isso a incompatibilidade entre pensamento e sensação, apesar da especificidade que distingue estas duas formas de pensamento.

Aparece ali uma doutrina que é de Sócrates. Mas a elaboração da mesma, como ocorre nos Diálogos, certamente muito recebeu do próprio Platão, particularmente quando este mostra que possuímos uma faculdade que opera em termos de verbo ser.

Mostrou Platão a especificidade da inteligência, apontando para o objeto muito especial por ela encontrado, e que não coincide com o da vista e dos ouvidos. Aliás, a distinção das faculdades somente se poderia fazer pela indicação de seu objeto formal, ou seja, especifico.

Diz Platão, pela boca de Sócrates e Teeteto, com o objetivo final de refutar o sensismo dos sofistas e estabelecer a especificidade da inteligência, como sendo a faculdade que percebe o ser enquanto ser, encontradiço em todas as coisas sensíveis, apesar das diferenças enquanto sensíveis:

"Sócrates: Se reside algo em nós, por meio do que percebemos com os olhos o branco e o preto, e com os demais sentidos, os outros sensíveis - poderás, se te interrogarem, referir tudo isto ao corpo?...

E diga-me, - aquilo por meio de que sentes o calor, a dureza, o leve e o doce, não o consideras, como cada um dos órgãos do corpo? É outra coisa?

Teeteto: Não é outra coisa.

S.: Convirás em que o que sentimos por meio de uma faculdade não se pode sentir por meio de outra, e o que chega pelo ouvido, não o podes sentir por meio da vista, assim como o que procede desta não pode chegar-te por via do ouvido?

T.: Como poderia não deixar de reconhecê-lo?

S.: Por conseguinte, se algo pensas como pertencente à duas percepções, não perceberás o comum a ambas por via de um destes órgãos, nem por meio do outro.

T.: Certamente não.

S.: Pensas por conseguinte que este primeiro caráter do som e da cor, que os dois são?

T.: Com efeito.

S.: E também que cada um deles é diferente do outro, porém idêntico a si mesmo?

T.: E porque não?

S.: E que ambos são dois e que cada um é uno?

T.: Sim, também.

S.: E sua mútua dessemelhança, és capaz de examiná-la?

T.: É possível.

S.: E por meio de que pensas tudo isto? Não pode, com efeito, chegar algo comum a ditas percepções, nem pelo ouvido, nem pela vista. Tal é, além do mais, uma prova de quanto vínhamos dizendo: se fosse possível determinar a salinidade ou a não-salinidade de ambos, não cabe dúvida de que poderias declarar por meio de que a distinguirias, e não seria nem pela vista, nem pelo ouvido,senão por meio de alguma outra coisa.

T.: É claro. Não é a faculdade que se exerce com a língua?

S.: Dizes com acerto. Com que se exerce, porém, a faculdade que te manifesta o que é comum a estes sensíveis, o que tu designas com os termos "é" e "não é", e com outros termos que o propósito disto mencionávamos agora mesmo? Que órgãos designarás a todos estes comuns por meio dos quais aquilo que em nós percebe pode distinguí-los?

T.: Falas do ser e do não ser; da semelhança e dessemelhança, da identidade e da diferença; da unidade e qualquer outro número concebível a propósito. É indubitável que indagas por meio de que instrumentos corporais percebemos com a alma o par e o ímpar e as restantes determinações.

S.: Acompanhas perfeitamente, e é o que precisamente te peço.

T.: Porém, por Deus, não poderia responder outra coisa, senão que em primeiro lugar entendo que nenhum órgão desta classe é próprio destes comuns, e que vejo que a alma por si mesma os distingue em todas as coisas.

S.: És belo!... vês que a alma por si mesma percebe uma coisa e por meio das faculdades (órgãos) do corpo, outras...

Em qual das duas ordens pões o ser? Porque é ele que está acima de tudo (o mais extenso)?

T.: O ponho entre os objetos que a alma se esforça em alcançar por si mesma?

S.: E também o semelhante, e o dissemelhante, o idêntico e o diferente?

T.: Sim.

S.: E que mais? O belo, o feio, o bem e o mal?

T.: De todas estas determinações me parece que sobre tudo considera sucessivamente o ser, analisando e comparando em si mesmas as coisas pretéritas e as presentes com as futuras" (Teeteto, 184 b, ss).

Mais adiante esclarece Platão em definitiva, que a ciência se encontra no plano que não é o dos sentidos, como queriam os sofistas, mas num outro, que é o da inteligência especificamente distinta, sendo só ela capaz de captar a verdade. Portanto, estabeleceu a distinção específica de inteligência e sentidos.

"S.: Acaso distingue a verdade quem não chega a captar o ser?

T.: Impossível.

S.: E onde não se alcança a verdade, poderia haver ciência?

T.: Como é possível isto?

S.: Não reside por conseguinte, a ciência nas impressões, senão no arrozoado ( µ ) sobre as impressões; porque a verdade aqui se pode alcançar e ali, segundo parece, é impossível.

T.: Evidente.

S.: Chamarás, pois, com o mesmo nome coisas que têm tais diferenças?

T.: Isto não seria justo.

S.: Por conseguinte, que nome atribuirás a isto, ao ver, ouvir, gostar, esfriar-se e aquecer-se?

T.: Sentir ( ) creio eu; e que outro haveria?

S.: E em conjunto chamas a isto sensação ( )?

T.: Necessariamente.

S.: À que não corresponde, afirmamos, a percepção da verdade, pois que não distingue o ser?

T.: Não com efeito.

S.: Nem por conseguinte à ciência.

T.: Nem tão pouco.

S.: Donde se segue que jamais sensação e ciência são idênticas" (Teeteto, 186 d-187e).


 

III - Racionalismo anti-empirista. 6316y104.

É possível estabelecer a especificidade da inteligência, e contudo ficar limitado ao conhecimento experimental, como quer o empirismo e o positivismo, quando só admite como válido o que é testável, ficando os demais conceitos como linguagem mental para ordenamento meramente formal do saber.

O racionalismo é a filosofia de todos, como Platão e Aristóteles, escolásticos medievais, Descartes, Leibniz e outros modernos, que admitem o desempenho válido da razão, quando segue para conhecimentos mais além da testabilidade.

106. Contra o empirismo ou positivismo também vigente entre os sofistas e em parte uma tendência dos jônios, desenvolveu por conseguinte Platão uma gnosiologia racionalista, favorável aos conhecimentos universais, inclusive dos primeiros princípios (ou axiomas).

Neste particular Platão é um eleata, porquanto retoma a doutrina do ser de Parmênides ainda que não no que se refere ao unicismo. Importa sempre advertir que todos os metafísicos se inspiram em Parmênides como primeiro introdutor que este foi da doutrina do ser, bem como dos seus princípios.

A dialética de Platão se apoia nos primeiros princípios. Elimina sempre o que resulta contraditório na comparação dos elementos colocados em discussão.


 

IV - Racionalismo radical: as idéias separadas.

Todavia há duas espécies de racionalismo. É moderado o racionalismo de Aristóteles, o qual, embora admita o conhecimento do ser, contudo só capta no fundo do ser sensível; este, ao mesmo tempo que percebido pelos sentidos, é também percebido como ser pela inteligência. É radical o racionalismo, que já vem do pitagorismo, mas do qual foi Platão, o seu primeiro importante mentor, e tem como ponto de partida um ser, que não depende de intuí-lo nos objetos sensíveis, embora ali também o intua.

Para Platão o homem já nasce com a idéia do ser. Depois, ao reencontrar o ser nas coisas sensíveis, apenas encontra nestes conhecimentos sensíveis um estímulo, para relembrar o conhecimento universal preexistente. Ocorre, então, uma reminiscência, e não um novo conhecimento.

Mais tarde também serão radicais, ainda que com variantes, os racionalismos neoplatônicos de Plotino, Agostinho, e os modernos, de Descartes, Spinoza, Malebranche, Leibniz, - porque todos autonomizam o pensamento em relação à intuição do ser do sensível.

Racionalismo radical significa estabelecer que, - advertimos de novo, - que a razão é não somente distinta dos sentidos, mas também é capaz de funcionar sem eles, sem o ser captado no sensível, atingindo as noções puramente racionais, como os conceitos universais e os primeiros princípios ou axiomas, a partir dos quais estabelece todo um sistema de filosofia.

Tendem para o racionalismo radical os que se imaginam a alma humana como tendo tido uma preexistência separada do corpo, e portanto dos sentidos corporais.

Este racionalismo radical não somente se distingue do empirismo (ou positivismo), como também do racionalismo moderado, cujo ponto de partida é o da intuição do ser, ao mesmo tempo que acontece o conhecimento sensível experimental. Ao mesmo tempo que se diz, - vejo cor, - diz-se também, - é cor.

Na Idade Média Tomás de Aquino retomará a posição Aristotélica. Nos tempos modernos Kant, depois de transformar o cartesianismo em idealismo, também condiciona o surgimento dos conceitos universais aos fenômenos sensíveis, ainda que para o seu apriorismo tais conceitos sejam tão só uma estrutura interna da mente.

Desde Platão e Aristóteles há, pois, duas direções nitidamente distintas de racionalismo, uma radical, e outra moderada.

Ainda que Platão também opere o conhecimento a partir do sensível, adverte que este procedimento somente produz a opinião, a qual pode eventualmente despertar a recordação do conhecimento puramente racional. Neste caso particular, - do ser colhido no sensível passar a despertar o ser da idéia inata, - pensar é uma reminiscência. Este modelo de pensamento não é aceito por Aristóteles, razão porque se inauguraram duas grande filosofias ao tempo da Grécia clássica, - o platonismo e o aristotelismo.

Despertam a atenção vários aspectos oferecidos pelo conhecimento operado ao modo do racionalismo radical de Platão:

- os universais e seus objetos reais transcendentais;.

- a multiplicidade das idéias separadas;

- em especial, as provas sobre o realismo platônico;

- o mito da intuição inicial;

- a ciência como reminiscência;

- purificação como método de conhecimento.


 

a) Os universais e seus objetos reais transcendentais.

O realismo universal transcendental. As idéias universais da mente, no racionalismo radical de Platão, correspondem objetos separados ditos também idéias separadas, ou mesmo idéias reais transcendentes.

Os objetos deste nosso mundo sensível geram apenas idéias, chamadas opiniões. Aqueles outros objetos, correspondentes às idéias universais da mente estão em um mundo transcendente, separado deste nosso, onde aqueles objetos existem como uma realidade efetiva. Chamam-se idéias universais reais, ou simplesmente idéias reais, ou mesmo idéias separadas.

Platão chamou também a aqueles objetos das idéias separadas de idéias arquétipas, este último nome em função ao fato de se terem exercido como modelos das coisas deste nosso mundo, quando foi ordenado pelo Demiurgo supremo.

Os objetos das idéias universais de nossa mente não são os mesmos que os objetos das demais idéias formadas à partir do mundo empírico. Inversamente as idéias universais de nossa mente se distinguem daquilo que elas têm por objeto num outro mundo (separado do mundo físico), apesar de também se denominarem pela designação de "idéia".

A respeito das "idéias separadas", há de distinguir entre o lado gnosiológico, que é distinto do ontológico, ainda que ambas as considerações sejam partes da mesma filosofia geral (ou metafísica).

Dizer da existência de idéias separadas é uma questão gnosiológica; fazer delas exemplares ou arquétipos das coisas da natureza é uma questão ontológica.

Como se deva entender o caráter real das idéias transcendentais, é um ponto bastante obscuro da filosofia platônica. Em geral, admite-se que efetivamente Platão as considerasse reais.

De modo algum as idéias para o autor dos Diálogos, representam noções abstratas meramente intencionais. Até ali a questão se encontra hoje fora de dúvida; efetivamente, as idéias de Platão foram entendidas por ele como sendo reais. Assim como Deus é entendido como uma espécie de idéia real, Platão concebeu a todas as idéias como sendo reais, com a diferença que elas são muitas, ainda que tendo uma certa hierarquia.

Arrojada em si mesma, a tese da realidade autônoma das idéias, foi amenizada entretanto, pelos neoplatônicos, notadamente por Plotino e Agostinho de Hipona. Negaram estes a realidade autônoma às referidas idéias, reduzindo-as à formulações do espírito localizadas na mente divina.

Retomaram à mesma interpretação os neoplatônicos do Renascimento reaparecendo ainda recentemente em Cousin e Natorp.

Entretanto, a interpretação neoplatonista se apresenta anti-histórica, desde o momento que se queira identificá-la como doutrina do mesmo Platão. Nos tempos modernos tem sido eficazmente combatida a começar de Herbert (Herbert, Einleitung in die Philosophie, § 144. Werke I, 244 ss).

Para Platão as idéias são um mundo de verdadeira realidade e anterior ao mundo sensível; a forma deste é apenas um reflexo daquele, como deverá explicar exaustivamente a propósito doexemplarismo.

No caso, vale também muito a autoridade de Aristóteles, o discípulo mais perspicaz de Platão, e que interpretou as idéias como reais e se ocupou em uma detalhada refutação das mesmas; o trabalho de Aristóteles seria inteiramente superficial, caso errasse na interpretação da substância da questão, o que não se pode admitir no mestre do Liceu.

Não obstante, a reinterpretação neoplatônica, ao colocar as idéias na mente divina, poderá ser conduzida avante, da seguinte forma, em que acabam continuando reais: Deus coincide com sua mesma idéia, em virtude de sua simplicidade; ora, se Deus é real e se de outra parte coincide com sua mesma idéia, resulta que a idéia em Deus é real.

Foi por esta via que Tomás de Aquino aproximou entre si o platonismo e o aristotelismo. Deus é ao mesmo tempo criador do mundo e sua idéia exemplar. Teria faltado a Platão apenas o poder de síntese para levar até o fim as transformações a que vinha submetendo o pensamento gnosiológico e ontológico dos eleatas e pitagóricos.


 

b) A multiplicidade das idéias separadas.

A multiplicidade das idéias separadas é um destaque da doutrina de Platão e que vem do pitagorismo.

Havendo tomado o caminho dos pitagóricos, Platão introduziu em seu sistema a multiplicidade dos números, destes, mas como multiplicidade das idéias.

Para os pitagóricos tudo eram números, incluindo as formas geométricas.

Substituindo os números por idéias, introduziu Platão uma importante modificação no pitagorismo. Por isso, ele mesmo foi apenas uma espécie de neopitagórico.

Os números certamente limitavam o quadro metafísica ao espaço, que é efetivamente a realidade do mundo ante nós. As "idéias" alargaram o campo da realidade para além da especialidade do mundo físico, ou seja para o metafísico, portanto para o ser em geral.

A multiplicidade é peculiar dos números, mas não claramente do ser. Platão poderia ter sugerido uma idéia exemplar única, e que sob múltipla faces fosse imitada pelos seres do mundo, conforme a posição de Plotino, Agostinho e sobretudo de Tomás de Aquino.

Mas, não: para Platão as idéias reais, ou separadas, são efetivamente muitas.

A respeito da multiplicidade das idéias reais do platonismo, informou Aristóteles, que foi aluno e mestre da Academia ao tempo do mesmo Platão:

"O número das idéias é aproximadamente igual ou menor, comparado àquele dos seres sensíveis, dos quais estes filósofos, indagando pelas causas, partiram para chegar às idéias: porque a cada coisa corresponde uma realidade homônima, e existindo à parte, tanto das substâncias propriamente ditas, quanto das essências de outras coisas que comportam a unidade de uma multiplicidade, que se trate de uma multiplicidade sensível ou duma multiplicidade eterna" (Metaf. 990b 4-8).

Mas embora tenha estabelecido Platão a multiplicidade das idéias reais, o seu sistema conduz naturalmente ao monismo e depois ao emanatismo, tendência que alguns de seus discípulos, como Plotino, levaram a efeito.

Procurou, entretanto, Platão afastar-se sempre do unicismo, qualquer fosse ele, mas sobretudo dos eleatas, mantendo a pulverização das idéias.

Seu esforço neste sentido se esboça em duas provas. A primeira é uma prova direta, baseada na experiência incontestável dos fatos. A outra é uma prova indireta, estabelecida como exigência sem a qual se destruiria aquilo que já fora aceita por ele como um fato, a ciência.

Como prova direta da multiplicidade das idéias reais alegou Platão o mundo experimental. As perfeições estáveis do mundo parecem-nos susceptíveis de definições que são múltiplas; tal ocorre com justiça, a prudência, a força, a virtude. Entretanto, para que tais noções apresentem realmente valor, necessitam de um objeto. É assim que Platão postula no mundo inteligível objetos múltiplos para atender às variadas definições das ciências deste gênero.

Partiu Platão também da consideração de que a negação da pluralidade das idéias reais equivaleria a negar a mesma ciência. Se se unificasse todo o ser, num único e grande inteligível, de modo a se reduzirem os graus de perfeição a simples modalizações do todo, não poderia haver julgamentos em separado e a ciência humana, como ela se apresenta, isto é, como conhecimentos coordenados e múltiplos, não teria cabimento.


 

c) Em especial sobre as provas do realismo platônico.

Qual teria sido a argumentação de Platão em favor das idéias separadas, cujo conhecimento conseguiríamos independentemente da experiência?

A pergunta pede a prova de seu racionalismo radical. Efetivamente, as várias considerações de detalhe a fazer sobre a doutrina das idéias de Platão devem começar por uma pedida de prova. Esta nunca se encontra rigorosa e sinteticamente formulada nos textos que dela se ocupam.

Aristóteles, usando curiosamente ainda o plural dos platônicos, aos quais pertenceu, diz:

"Dentre todos os argumentos dialéticos mediante os quais nós demonstramos a existência das idéias, nenhum é evidente. Alguns dentre eles não conduzem a uma conclusão necessária, outros estabelecem idéias de coisas, que no nosso modo de ver, não as têm" (Metaf. 990b 9).

A doutrina das idéias reais e suas provas obedecem a uma evolução interna, que hoje é difícil fixar.

Os primeiros sinais aparecem já no período pré-acadêmico, nos Diálogos socráticos de sentido estrito, da mocidade, notadamente em Cârmides e Hípias Menor, em que os problemas versados são ainda tipicamente socráticos, relativos à virtude e à ciência.

A partir do período acadêmico (387 a.C.) surgem bastante claras as novas doutrinas da metempsicose e das idéias reais, como se vê em Ménon e Crátilo, Banquete e Fédon.

A participação da matemática nas concepções ideológicas de Platão começa a adquirir importância a começar de Ménon. Em Timeu constrói o mundo com figuras geométricas. Em Leis opina que não chegará a ser "homem divino" quem não entende de matemática e astronomia (818 c).

Pelo que se infere dos contextos de Banquete, Fédon, Timeu, as idéias são conceitos genéricos hipostasiados, que indicam noções axiológicas, como o bem e o belo, objetos naturais, como fogo e neve, coisas corriqueiras, como cabelo (Parmênides 130) e cama (República 596), relações matemáticas, como grande e pequeno, unidade e dualismo.

Mas refere Aristóteles que nos últimos tempos Platão estabelecia somente idéias de coisas materiais, e não de artefatos, negações e relações (Metaf. 1070a 18).

Poder-se-ia aduzir em primeiro lugar, e como prova platônica para a intuição imediata das idéias universais da mente sem recurso à experiência, a alegação do fato interno da mente , fato que apenas se explicaria satisfatoriamente por uma tal teoria.

Mais simplificadamente, a prova apela ao fato da intuição imediata das idéias. Ora, se ocorrem tais intuições imediatas, não há senão admitir a tese do racionalismo radical.

Platão ao apelar ao fato, não partiu senão de uma observação mal interpretada. Alegou que um ignorante habilmente perguntado, descobre verdades, de ordem meramente inteligível sem qualquer aprendizagem.

No diálogo Ménon um escravo é posto a revelar diversos conhecimentos geométricos, que ninguém lhe ensinara, mas que descobre no decorrer das interpretações bem conduzidas. Infere dali para a realidade da intuição daqueles conhecimentos universais, cujos objetos não seriam objetos empiricamente conhecidos, sendo portanto objetos transcendentes, isto é, separados dos deste mundo.

Eis o texto de Platão, com vistas à reminiscência das idéias de objeto transcendental:

"Ménon: Se te é possível mostrar-me de qualquer modo que as coisas de fato se passam como o dizes, demonstra-mo, pois esse é o meu desejo.

Sócrates: Não é uma tarefa fácil o que pedes; fá-la-ei, entretanto, de boa vontade, por se tratar de ti. Chama a qualquer um dos escravos que te acompanham, qualquer um que queiras, a fim de que por meio dele eu possa fazer a demonstração que pedes.

M.: Com prazer. (Dirigindo-se a um de seus escravos moços): aproxima-te...

Sócrates: ... (Voltando-se para o escravo ao mesmo tempo que traça no solo as figuras necessárias à sua demonstração): Dize-me, rapaz, sabes o que é um quadrado?

Escravo: Sei.

S.: Não é uma figura, como esta, de quatro lados iguais?

E.: É.

S.: E estas linhas, que cortam o quadrado pelo meio, não são também iguais?

E.: São.

S.: E esta figura poderia ser maior ou menor, não poderia?

E.: Poderia.

S.: Se pois, este lado mede dois pés e este também dois pés, quantos terá a superfície deste quadrado? Repara bem: se isto for igual a dois pés e isto igual a um pé, a superfície não terá de ser o resultado de uma vez dois pés?

E.: Terá.

S.: Mas este lado mede também dois pés; portanto, a superfície não é igual a duas vezes dois pés?

E.: É.

S.: A superfície por conseguinte mede duas vezes dois pés?

E.: Mede.

S.: E quanto iguala duas vezes dois pés? Conta e dize.

E.: Quatro, Sócrates.

S.: E não nos seria possível desenhar aqui uma outra figura, com área dupla e de lados iguais como esta?

E.: Sim, seria.

S.: E quantos pés, então mediria a sua superfície?

E.: Oito.

S.: Bem, experimenta agora responder ao seguinte: que comprimento terá cada lado da nova figura? Repara: o lado deste mede dois pés - quanto medirá, então, cada lado do quadrado de área dupla.

E.: É claro que mede o dobro daquele.

S.: (A Ménon) Vês, caro Menon, que nada ensino e que nada mais faço do que interrogá-lo? Este rapaz agora pensa que sabe quanto mede a linha lateral que formará um quadrado de oito pés. És da minha opinião?

M.: Sou" (Ménon 82).

E prosseguindo em novas interrogações, conseguiu Sócrates extrair do escravo sempre mais afirmações, representando cada vez novos progressos, para concluir:

"Que te pareceu, caro Ménon? Este rapaz, acaso, não me disse em resposta o que justamente pensava?

M.: Sim, o que ele próprio pensava.

S.: E entretanto, como já dizíamos há pouco, ele nada sabia dessas coisas" (Ménon. 85).

Mas Platão se equivocou. O escravo efetivamente fazia pequenas comparações, pelas quais fazia novo juízos e também pequenos raciocínios, tal como um mestre-escola conduz de pouco em pouco o menino a pensar a partir de dados precedentes, que ele aprendera diretamente na compreensão do ser das coisas sensíveis.

Platão atribuiu um caráter tal à idéias universais encontradas na mente, que elas efetivamente não podem ser tomadas das coisas por mera abstração. Mas isto poderá ser falso, e por isso poderá não criar prova.

As idéias universais não contém entretanto tudo o que nelas Platão acreditou encontrar. Se se limitar o conteúdo das idéias universais, elas talvez possam derivar da mera abstração mental, que às toma as coisas singulares. Teriam estas coisas uma estrutura, em que parte é singular e parte é universal; abstraída uma, fica a outra, dirá Aristóteles.

Ponderava Platão que as idéias exemplares não se repetem com a mesma perfeição nas coisas singulares tais como se encontram nos modelos arquétipos. Neste caso elas como que se comportam à maneira da sombra em relação ao corpo, ao qual representam precariamente. Assim sendo, através das sombras deste mundo jamais conseguimos o conhecimento perfeito do outro.

Tal problema ocorre certamente com o conhecimento que se queira ter de Deus através dos conceitos formados sobre o mundo por ele criado. Efetivamente, se o mundo criado não reproduz por inteiro a divindade, não o pode espelhar senão em parte.

Se este é o fato, temos que nos resignar a ele, já que não hão há o caminho direto. Este princípio conduz o pensamento filosófico depois de Platão, sobretudo o de Aristóteles, que introduz o conceito por analogia. Deus o conheceremos a partir deste mundo, conceituando-o todavia em analogia com este.

Com referência a Platão, queria ele que as idéias universais da mente fossem exatamente o equivalente daquelas do outro mundo (das idéias reais). As referidas idéias separadas foram simplesmente identificadas por outros filósofos como sendo o mesmo Deus. Ora, não podemos equiparar as idéias da mente humana com as idéias do outro mundo (idéias reais), se elas estão ao nível da perfeição do ser considerado por definição perfeito.

Em parte alguma a prova de Platão, é eficaz para mostrar que há aquela equivalência alegada entre as idéias universais possuídas pelo ser humano e as idéias universais reais.

Não afasta a prova eficazmente a alegação que depois fará Aristóteles, que os universais colhidos na intuição sensível são analógicos com o ser absoluto, e que não nada mais no conhecimento humano, o qual por isso mesmo é limitado.

Por isso, a hipótese platônica de racionalismo radical simplesmente cai no vazio. Ela teve contudo a vantagem dialética de estabelecer a discussão de algo importante, e que foi orientar a doutrina sobre o conhecimento de Deus, como não podendo ser mais que um conhecimento meramente analógico: o que se conhece de Deus não é ainda tudo o que Deus é, mas análogo àquilo que ele efetivamente é (ou é, ao menos por definição) a saber, um ser perfeito.

Posto, entretanto, o que Platão afirmava (ainda que sem o provar) que há idéias universais sem recíproca nos conhecimentos obtidos a partir dos objetos tipo sombra deste mundo, cabia a ele completar a explicação final deste racionalismo. Platão dará a sua versão, mas outros racionalistas radicais darão outras e outras.

Acreditava Platão que a origem das idéias universais da vida presente se devia a uma vida anterior.

Mais tarde Agostinho dirá que se trata de uma "iluminação divino-natural", ocorrida por ocasião da criação do ser humano.

Descartes dirá simplesmente que se trata de "idéias inatas".

Platão ainda se mantém um pitagórico, enquanto acreditava numa vida anterior.

Também para Platão, a alma, em algum tempo anterior, foi criada (o que é não-pitagórico); na fase inicial de sua existência teria a alma tido o conhecimento direto das idéias universais arquétipas. Como provaria Platão isto?

O detalhe não é muito diferente do de Agostinho e Descartes, porque todos os três defendem uma origem distinta da abstração, que Aristóteles fazia a partir das coisas conhecidas experimentalmente neste mundo. Este detalhe da visão direta apresenta-se bastante gratuito, razão porque neste particular Platão sofreu reformulações de platônicos e neoplatônicos.

Inspirou Platão as teologias das religiões, inclusive cristã, sobre uma visão a terem os homens de Deus após a morte. Bastaria a libertação da alma para atingir esta visão e nela estaria a felicidade maior e definitiva.

Teólogos mais subtis mostrarão todavia que tal visão importaria ainda em uma elevação da natureza humana mediante uma luz especial, em virtude da desproporção do intelecto humano e o ser divino infinito. Em função à esta elevação desenvolveu-se toda uma teologia salvacionista cristã, com apoio sobretudo dos pensadores neoplatônicos.

De outra parte, Platão (exatamente porque se refugia na teoria das idéias reais) rebaixa excessivamente o conhecimento sensível, fazendo por conseguinte concessões aos sofistas, aos eleatas, aos heraclíteos, ainda que os combatesse a todos. Acentuam os sofistas a relatividade dos sentidos. Os eleatas, para destacar o conhecimento do ser único, reduzem os conhecimentos sensíveis a opiniões sem fundamento. Os heraclíteos insistem na mobilidade geral.

De novo podemos rejeitar a prova platônica em virtude das concessões feitas sem fundamento.

Aristóteles atribui diretamente a fundação da doutrina das idéias reais dos platônicos à preocupações dos seus fundadores com o mobilismo de Heráclito:

"A doutrina das idéias foi, junto de seus fundadores, a consequência dos argumentos que os persuadiram, e segundo os quais todas as coisas sensíveis estão em um fluxo perpétuo, de sorte que, se há ciência e conhecimento de alguma coisa, deverão existir por fora das naturezas sensíveis, outras realidades e que são estáveis, porquanto não há ciência do que está em perpétuo fluxo" (Metaf. 1078b 13-18).

Aceitou Platão o relativismo do sofista Protágoras no que se refere aos sentidos. No seu diálogo Protágoras manifesta preocupação expressa com o homem medida de todas as coisas.

Cedeu portanto Platão deliberadamente à opinião de Protágoras quanto aos sentidos, e a impossibilidade, de, por seu intermédio, se ir à essência das coisas. No Teeteto "atribui toda a homenagem possível aos méritos científicos da sofística" (Windelband. H. da fil. ant. n.35 p.214 nota 51).

Ainda outros argumentos têm sido ensaiados por Platão em favor da teoria das idéias reais, e a que se refere Aristóteles para refutá-los:

"Segundo o argumento da unidade de uma multiplicidade, haveria também (idéias) das negações" (Metaf. 990 b 15).

Este argumento é também comentado por Alexandre de Afrodísio (Alex. 80, 8-15). Em essência, faz considerar, por exemplo, que em muitas coisas sensíveis se verifica sempre a mesma noção universal, de pulcritude; mas em nenhuma se verifica de modo adequado, razão porque a idéia de pulcritude não está nelas, mas em separado.

Contestou-se por via dialética. Aliás, a refutação de Aristóteles a Platão consiste em revelar os absurdos a que conduziria sua hipótese. Toda a multiplicidade deveria corresponder a uma idéia; deveria haver mesmo idéias da multiplicidade das coisas negativas, como do não-homem, do não-animal, o que é absurdo. Criará, oportunamente, Aristóteles uma explicação para a repetição do mesmo atributo específico em muitos indivíduos.

A preocupação paradigmática de Platão tem mais sentido no caso da multiplicidade dentro da mesma espécie, pois efetivamente é o mesmo atributo que se repete: para que seja o mesmo, algo haverá de absoluto e paradigmático, que passa a ser imitado; aceita-o Aristóteles, mas não admite que tal paradigma seja uma idéia real separada na forma como Platão pretendia.

Por alí se pode ver que em algo Platão e Aristóteles coincidem, a saber que há uma essência específica e absoluta a repetir-se na multiplicidade dos indivíduos; divergem apenas no modo de concebê-la, o primeiro pelo racionalismo radical (com explicação sem a experiência), o segundo pelo racionalismo moderado (com a experiência).


 

d) O mito da intuição inicial.

A formulação mítica da intuição inicial das idéias universais separadas é uma página das mais notáveis da literatura filosófica saída da pena de Platão. Situadas as almas nos astros, imagina-se que saíram em passeio de carruagem pela abóbada do céu, quando tiveram a oportunidade de contemplar aquelas realidades ideais.

A figura da carruagem puxada por hábeis corcéis, a subirem pelo espaço, é uma criação imaginosa que poucos séculos antes se generalizara nos mitos, de que tratam poetas de vários povos. Foi uma imagem aproveitada na filosofia a primeira vez no poema do ser de Parmênides, repetindo-se agora em Platão, que certamente conheceu o texto do seu antecessor. Até mesmo na Bíblia judaica o mito se manifesta, no episódio da subida aos céus do profeta Elias levado em carruagem puxada por cavalos de fogo (IV Reis 2, 11).

A descrição de Platão se encontra no Fedro, diálogo do período de transição anterior à sua segunda viagem a Siracusa.

O comportamento da alma, no período de sua preexistência, em que acreditavam sobretudo os pitagóricos, é descrito como se a mesma alma fosse um cocheiro (a razão), com seus impulsos representados por dois corcéis, um bom (a vontade ou o coração) e outro mau (a concupiscência), em marcha na direção do mais alto céu da divindade, para ali contemplar as idéias, para a seguir se precipitarem ao solo material da terra.

"A alma pode ser comparada com uma força natural e ativa que unisse um carro puxado por uma parelha alada e conduzido por um cocheiro. Os cavalos e os cocheiros das almas divinas são bons e de boa raça, mas os dos outros seres são mestiços. O cocheiro que nos governa, rege uma parelha, na qual um dos cavalos é belo e bom, de boa raça, enquanto que o outro é de má raça e de natureza contrária. Assim conduzir nosso carro é ofício difícil e penoso... Entre os seres animados, uns são mortais e outros imortais (Fedro 246 a-b).

 

O carro dos deuses e das almas imortais:

"Zeus, o grande condutor do céu, anda no seu carro alado a dar ordens e a cuidar de tudo.

O exército dos deuses e dos demônios segue-o distribuído em onze tribos. Héstia (deusa do lar) é única entre os seres divinos que permanece em casa. Cada um dos outros onze deuses é guia, conforme a ordem da sua tribo.

Há muitos e agradáveis espetáculos e caminhos no céu, por onde anda a grande família dos deuses, fazendo cada um deles o que lhe está afeto e seguindo-os aqueles que os podem seguir.

Quando se dirigem para o banquete que os espera, os carros sobem por um caminho escarpado até o ponto mais elevado da abóbada dos céus.

Os carros dos deuses, que são mantidos em equilíbrio graças à docilidade dos corcéis, sobem sem dificuldade.

Os outros grimpam com dificuldade, porque o cavalo de má raça inclina e repuxa o carro para a terra. Há então grande trabalho para a alma.

As almas daqueles que chamamos imortais, logo que atingem a abóbada celeste aí se mantêm; são impelidos por um movimento circular e podem então contemplar tudo o que fora dessa abóbada abarca o universo" (Fedro 246 e - 247 c).

Prossegue a solene descrição da marcha pelo céu platônico:

"Nenhum poeta ainda cantou, nem cantará a região que se situa acima dos céus. Vejamos, todavia, como ela é. Se devemos dizer sempre a verdade a isso somos ainda mais obrigados, quando se fala da própria verdade.

A realidade sem forma, sem cor, impalpável só pode ser contemplada pela inteligência, que é o guia da alma. E é na Idéia Eterna que reside a ciência perfeita, aquela que abarca toda a verdade.

O pensamento de um Deus nutre-se de inteligência e de ciências puras. O mesmo se dá com todas as almas que procuram receber o alimento que lhes convém.

Quando a alma, depois da evolução pela qual passa, chega a conhecer as essências, esse conhecimento das verdades puras a mergulha na maior felicidade.

Depois de haver contemplado essas essências, volta a alma a seu ponto de partida. Mas, durante a revolução pela qual passou, ela pôde contemplar a Justiça, a Ciência, não estas que conhecemos, sujeitas às mudanças e que se diferenciam segundo os objetos, mas a Ciência que tem por objeto o ser dos seres.

Quando assim contemplou as essências, quando se saciou da sua sede de conhecimento, a alma mergulha novamente no interior do céu e volta ao pouso.

E após a volta da alma, o condutor leva os cavalos a manjedoura e dá-lhes ambrosia e néctar. Essa é a vida dos deuses" (Fedro 247 c-e).

 

O carro das almas dos mortais:

"A sorte das outras almas, é, porém, esta: tudo fazem elas para seguir os deuses, erguem a cabeça do guia para a região exterior e se deixam levar com a rotação. Mas perturbadas pelos corcéis do carro, apenas vislumbram as realidades. Ora, levantam, ora baixam a cabeça, e, pela resistência dos cavalos, vêem algumas coisas, mas não vêem outras.

Outras há, porém, que, nostálgicas, seguem todas para cima, acompanhada a rotação, incapazes de se levantarem, empurrando-se e derrubando-se umas às outras, quando alguma pretende passar adiante. Há confusão e briga e abundante suor. Muitas se ferem, por culpa dos cocheiros. Muitas partem as penas de suas asas. Todas após esforços inúteis, na impossibilidade de se elevarem até a contemplação do ser absoluto, caem e sua queda as condena à simples opinião.

A razão, que atrai as almas para o céu da verdade, é porque aí poderiam elas encontrar o alimento capaz de nutri-las e de desenvolver-lhes as asas, aquele que conduz a alma para longe das baixas paixões.

É uma lei de Adrástea [personificação do inevitável] que toda a alma que segue a de um Deus, contempla algumas das verdades: fica isenta de todos os males até nova viagem e, se o seu vôo não se enfraquecer, ela ignorará eternamente o sofrimento.

Mas, quando já ela se enche de alimento impuro, de vício e de esquecimento, torna-se pesada e se precipita ao solo" (Fedro 248).

Até onde iria o lado mítico na descrição platônica?

Para Numêmio, filósofo neoplatônico de Apameia da Síria do 2-o século d.C., as almas dos mortais teriam de fato caído da esfera celeste.

Para Platão as almas efetivamente preexistem à vida presente e seu lugar natural seria o céu das estrelas.

Esta doutrina, de origem não bem conhecida, reaparece na imaginação cristã, que situa o céu no alto e como lugar futuro da alma, onde sua felicidade seria a contemplação da divindade.

Para este lugar subiu a carruagem do profeta Elias e para ele se elevou Jesus de Nazaré. Este lugar especial foi denominado terceiro céu, por Paulo Apóstolo, que diz ter sido elevado em êxtase até ele.

Anteriormente ao pitagorismo o lugar das almas era imaginado como sendo debaixo da terra, isto é, no Hades (nome grego) ou inferno ( nome latino). Depois evolui a idéia. Mantendo debaixo da terra os maus e no céu astronômico os justos. O platonismo contribuiu para a formação desta imagem de céu do após a morte.

Continua Platão o texto antes citado, referindo-se agora às diferentes reencarnações e tipos de homem, tudo em clima pitagórico. Estabeleceu aqui teses gnosiológicas juntamente com posições antropológicas e morais.

"Uma lei determina que, no primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um animal.

Aquela que mais contemplou gerará um filósofo, um esteta ou um amante favorito das Musas;

a alma de segundo grau irá formar um rei legislador, guerreiro ou dominador;

a de terceiro grau forma um político, um economista ou financista;

a do quarto, um atleta incansável ou um médico;

a de quinto, seguirá a vida de um profeta ou adepto dos mistérios;

a de sexto, terá a existência de uma poeta ou qualquer outros produtor de imitações;

a de sétimo, a de um operário ou camponês.

a de oitavo, a de um sofista ou demagogo;

a de nono, a de um tirano.

Quem em todas estas situações praticou a justiça moral, terá melhor sorte. Quem não a praticou, cai em situação inferior.

Para o ponto de que saiu uma alma não voltará ela senão passados 10.000 anos, pois, antes disso, não recebe asas.

Fazem exceção as almas dos filósofos sinceros e dos que amam com amor filosófico os rapazes.

Saem alados no terceiro milênio, se por três vezes seguidas escolheram a vida do filósofo.

Quanto às outras almas, terminada a primeira vida, são submetidas a julgamento.

Umas vão para lugares de penitência, abaixo da terra, para receberem o castigo;

outras sobem, por sentença, a um lugar do céu, onde desfrutam as recompensas das virtudes que praticaram na vida terrestre.

No milésimo ano, cada alma destas duas espécies tira a sorte e escolhe uma segunda vida, obtendo o que deseja.

Assim, uma alma humana pode entrar em corpo de animal, e a alma de um animal pode ir habilitar em corpo humano, desde que já uma vez tenha sido homem.

A alma, que nunca contemplou a verdade, não pode tomar a forma humana" (Fedro 248 d - 249 b).

e) A ciência como reminiscência. Idéias inatas.

Ocupada a alma ordinariamente com as coisas terrestres, o conhecimento adquirido nesta ocupação não é todo o conhecimento, porquanto ainda existem as realidades ideais, as únicas que são universais.

Nestes universais, anteriores à opinião, consiste a ciência, ou seja o verdadeiro saber, a filosofia.

Mas, ainda que a intuição das idéias separadas tenha sido direta e já tenha ocorrido em vida anterior, encontram-se estas idéias universais um tanto esquecidas, devendo ser recordadas com algum esforço. Tem de ser praticada uma recordação, ou reminiscência ( µ ).

A ciência é pois constituída pelas idéias inatas, conduzidas à reminiscência ( µ ).

As coisas sensíveis, ainda que não sejam as mesmas idéias separadas, são lhes contudo semelhantes. Por isso podem ser estímulos da referida recordação. Enquanto em alguns indivíduos mais embrutecidos elas fazem pensar apenas no objeto sensível, em outros produzem o estímulo adicional da reminiscência.

Deu Platão como exemplo desta diferença, advertindo sobre como os homens apreciam por desigual uma mulher: uns a vêem apenas como este ser sensível belo, para uma agradável conjunção dos corpos. Ao contrário, outros, ao verem o mesmo ser sensível belo, são estimulados também a recordar a idéia transcendente de mulher bela, e ainda, para o delírio superior que a visão do belo é capaz de produzir.

Portanto, ainda que a idéia separada não esteja contida na idéia adventícia da coisa sensível, e dela não se abstraia, porque nela apenas se encontra uma imitação deficiente como sombra, ela pode contudo adicionalmente estimular a reminiscência da referida idéia separada intuída em um passado remoto e conservada em estado subconsciente.

Não chega o objeto deste mundo a ser causa efetiva da idéia universal da mente, porque um seccionamento perfeito ocorre entre os dois mundos, mas contudo consegue ser a causa ocasional de sua recordação.

Há a considerar como a reminiscência simplesmente se exerce. A seguir há a considerar as práticas que a favorecem, como a purificação e a dialética do amor.

A reminiscência se exerce por um esforço de atenção, por meio do qual a mente passa de um nível de conhecimentos ao outro, do sensível que é estimulo, ao das idéias separadas.

Dentro de cada nível ainda ocorrem graus, devendo-se ir de um ao outro, em marcha ascensional constante. Nesta marcha ascensional para redescoberta das noções universais discerniu portanto Platão dois tempos gerais, com subtempos.

O primeiro tempo geral da reminiscência se refere ao mundo alcançado experimentalmente, que se redividido em dois outros tempos (ou graus), o da conjectura e pela fé dos mitos. Um e outro servem apenas como estímulo.

O segundo tempo geral se refere ao mundo separado, ou dos inteligíveis, em que também ocorre uma subdivisão de tempos (ou graus), o do conhecimento razoável e o da ciência.

Um texto platônico apresenta os quatro tempos, mas pela ordem inversa, ou descendente:

"Meu parecer é que se continue a chamar

- ciência, ao primeiro e mais perfeito modo de conhecer;

- conhecimento razoável, ao segundo;

- fé, ao terceiro;

- conjectura, ao quarto.

Compreendo os dois últimos sob o nome de (= opinião), os dois primeiros sob designação de inteligência.

O que nasce é objeto da opinião: o que é, objeto da inteligência. A relação do ser com o que nasce é a mesma que a da inteligência com a opinião, e a relação da inteligência com a opinião a mesma que a da ciência com a fé e a do conhecimento razoável com a conjectura" (República 533 e - 534a).

A distinção entre a idéia inata e a opinião, derivada da experiência, vem novamente reafirmada no Timeu (51 d - e).

Com mais detalhe, no primeiro tempo geral, principia a ascensão cognoscitiva do homem pelas coisas do mundo sensível; mas como estas não representam senão a sombra da realidade propriamente dita, não podem revelar toda a verdade.

No primeiro grau, o da simples conjectura, toma contato qualquer com a realidade sensível. É a noção de quem ouve, escuta, vê coisas quaisquer, por exemplo, uma bela música, uma encantadora flor, etc...

No segundo grau, da ascensão, mas ainda com a luz da experiência sensível, o conhecimento do homem passa a tomar aspectos mais organizados, principalmente pela generalização dos termos, de modo a se criarem definições científicas.

Entretanto, em virtude de se ficar ainda com a simples luz da sensibilidade, não pode este tipo de conhecimento progredir até a plena luz; estaciona num plano comparável com as alegorias, comparações literárias, de que o estilo do próprio Platão é um exemplo.

Aristóteles ficará aqui e por meio da teoria da abstração mostrará que no sensível se captam também os universais, principiando pela idéia do ser do sensível, e com isso rejeita, como desnecessário o segundo tempo de Platão, no qual seguia para as idéias inatas.

Entretanto, no entender de Platão, há um segundo tempo geral no processo cognoscente, quando a ascensão cognoscitiva do homem alcançaria seu verdadeiro objetivo ao voltar-se para as idéias do mundo inteligível, que se encontram nele mesmo, idéias que são reminiscências de um vida anterior.

No primeiro grau deste segundo tempo geral se revelam as noções das ciências exatas, matemática, física, geometria. Tem elas necessidade de imagens sensíveis, razão porque são menos puras; mas a última razão de seus axiomas se baseia no mundo dos inteligíveis, conforme se vê na definição abstrata que se dá aos números e às linhas.

No segundo grau, deste segundo tempo geral, a alma atinge a plena luz, pela intuição adequada das idéias. Só então ocorrerá a ciência perfeita, a sabedoria, ou seja a filosofia.

Encontra-se alia distinção futura entre ciência do ser particular da natureza, no sentido mais geral de física, e a ciência inteiramente universal, no sentido que assumiu a palavra metafísica.

 

Delírio, dialética do amor, entusiasmo pela verdade. Platão manifestou um entusiasmo peculiar pelo saber e sua diferentes manifestações, e que o levaram a descrever os estados de alma neste plano com uma linguagem bastante enfática.

Delírio é mais uma expressão utilizada por Platão para se referir à reminiscência que apela a recursos especiais e resulta no estado de alma acontecido ao ultrapassar ao conhecimento do ser do mundo.

No elogio ao amor, discurso colocado na boca de Sócrates (Fedro 244ss.) mencionam-se como:

- primeiro delírio, o profético, ao modo da profetiza de Delfos;

- segundo delírio, aquele dos profetas, que criaram os mistérios expiatórios, os quais libertam o homem de males presentes e futuros;

- terceiro delírio, aquele pelo qual os poetas são inspirados pelas Musas;

- quarto delírio, a reminiscência da verdade, sobretudo do belo, que incute notável prazer.

Liberto da influência negativa da matéria, o homem passa a aspirar ardentemente pelas coisas que viu na outra existência. A reminiscência desperta conhecimentos, cujos objetos, por serem os verdadeiros objetos da inteligência e objetos de mais valor, cativam a alma, produzindo a dialética do amor.

No delírio do amor filosófico o homem chega a conhecer o belo, a verdade, enfim, as idéias do mundo dos inteligíveis, e se encanta e se embevece, trabalho em que participam a inteligência, e a vontade, embora sempre perturbadas pela concupiscência.

Descreveu Platão amplamente o entusiasmo pelo belo, tanto como ele ocorre na vida que precede à atual, quando efetivamente se teve a iluminação do que hoje possuímos em reminiscência, como ainda continua este entusiasmo ocorrendo atualmente toda a vez que o belo se nos apresenta.


A quarta espécie de delírio, - reminiscência da verdade e do belo. Somente são especificamente humanas aquelas almas que em vida anterior, já de início, puderam intuir as idéias universais reais, ou seja a verdade. Somente elas poderão ter por isso reminiscências.

"A alma que nunca contemplou a verdade não pode tomar a forma humana.

A causa disto é a seguinte. É que a inteligência do homem deve se exercer, segundo aquilo que se chama Idéia, isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta faculdade não é mais do que a recordação das verdades eternas, que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas suas evoluções.

Por isso convém que somente o espírito do filósofo tenha asas; nele a memória, conforme sua aptidão, permanece sempre fixada nesses objetos, o que o torna semelhante a um Deus.

É somente fazendo bom uso dessas recordações, que o homem se torna verdadeiramente perfeito, podendo receber em grau ótimo as consagrações dos mistérios.

Um homem assim afasta-se dos interesses humanos e dirige seu espírito para os objetos divinos, embora a multidão o considere louco, sem perceber o que nele habita a divindade.

Ora, de tudo o que temos dito chegamos à quarta espécie de delírios: é quando alguém neste mundo vê beleza. Recorda-se então da beleza verdadeira; recebe asas e seja voar para o alto; não o podendo porém, dirige o olhar para cima, esquecendo os negócios terrenos e dando, desta maneira, a impressão de delirante.

De todos os entusiasmos este é o melhor e da mais perfeita origem. Saudável para quem o possui e dele participa. Quem é atingido por este delírio, ama o que é belo e chama-se amante" (Fedro249 b-e).

Platão opinou ainda que o delírio de amor filosófico deste mundo se encontra na medida e dependência daquele havido anteriormente; neste particular é lógico, já que estabelece que o conhecimento da vida atual não passa de uma recordação daquele do outro. E então prossegue, esclarecendo o porque das diferenças de capacidade mental:

"As lembranças desta contemplação não se acordam em todas as almas com a mesma facilidade.

Umas apenas entreviram o Ser verdadeiro: outras, após a sua queda, foram impedidas pela injustiça e esqueceram os mistérios sagrados que um dia contemplaram.

Portanto, são poucas as almas cuja recordação é bastante clara. Quando elas percebem um objeto que é semelhante a um outro de lá, assustam-se, e têm o mesmo sentimento daqueles que não conhecem bem um objeto porque não o percebem com nitidez" (Fedro 250 a).

Depois do trecho citado, que pertence ao Fedro, continua Platão a descrever o caso particular de como se desperta em nós o conhecimento, ou seja o amor do belo, pela reminiscência, descrição em que se demora, em virtude de ser o objeto do mencionado diálogo.

Encontra-se latente em Platão o fundo pitagórico que repudia o amor carnal, enaltecendo por isso tanto mais o amor metafísico pelo belo como tal e que a reminiscência põe em destaque.


 

O mito da caverna. Ao mesmo tempo que distingue as formas corpóreas como sombras inferiores às forma arquétipas, mostrou Platão como no evoluir do conhecimento se vai de umas às outras.

As graduações específicas ocorridas nesta evolução do conhecimento humano são expostas no mito da caverna, que é fantástico, embora pouco explique.

Conhecer aos seres efetivos através de suas sombras é tão limitado como conhecer um homem verdadeiro através da fotografia de sua estátua. O mito da caverna é apenas um outro modo de oferecer esta comparação, em que as sombras dos objetos projetadas no fundo da caverna são vistas primeiramente pela alma, representada por um cativo. Este depois é solto e vai descobrir o mundo real fora da caverna.

"Sócrates: Figura-te agora o estado da natureza humana em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer.

Imagina os homens, encerrados em morada subterrânea em forma de caverna, que de um lado dá entrada livre à luz. Alí, desde a infância, têm os homens, o pescoço e as pernas presos, de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto.

Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia: entre o fogo e os cativos imagina figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra e madeira. São nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmo e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?

Glauco.: Não.

S.: Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falarem das sombras que vêem e lhes dessem nomes, não pensariam que fossem coisas reais? E, se no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passavam, não julgariam certo que os sons eram articulados pelas sombras dos objetos? Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilavam.

G.: Necessariamente.

S.: Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam.

Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grandes penas; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-o de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhes desfilavam ante os olhos, o obrigassem a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro, do que os objetos ora contemplados?

G.: Sem dúvida nenhuma.

S.: Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos, para as sombras que poderia vem sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis, que os objetos ora mostrados?

G.: Certamente.

S.: Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir, para só o libertar quando estivesse lá fora, a plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegado à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe-ia possível discernir os objetos que o comum dos homens têm por seres reais?

G.: A princípio nada veria.

S.: Precisaria de tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente, erguendo os olhos para a luz e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia. Mas, ao cabo de tudo, estaria, de certo, em estado de ver o próprio lugar, tal qual é. Enfim estaria, de certo, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água, e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é. Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível, e, de certo modo, a causa de tudo que ele e seus companheiros viam na caverna.

Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?

Se na caverna houvesse elogio, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados?

Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?

G.: Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimento de preferência a viver da maneira antiga.

S.: Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como que submersos em trevas?

G.: Certamente.

S.: Se, enquanto tivesse a vista confusa, porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade, tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto?

G.: Por certo que o fariam.

S.: Pois, agora, meu caro Glauco, é só aplicares com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla, é a alma que se eleva ao mundo inteligível. ou, antes, já o queres saber, é este, pelo menos, seu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro" (República 514 a - 517 b).


 

f) A purificação como método de conhecimento.

Como sucede no pensamento religioso, quer órfico, quer cristão, quer budista, também no pitagorismo e no platonismo a purificação moral e o afastamento dos sentidos é condição considerada favorável à intuição das verdades mais universais e transcendentes.

O método para alcançar a intuição das idéias se apresenta logo à vista: afastar-se do conhecimento do sensível (método da purificação), para a seguir alcançar espontaneamente a intuição da idéia (dialética do amor).

Efetivamente, o que diretamente decide no conhecimento é a capacidade de atenção. As condições psicológicas e morais influenciam a atenção, com a diferença que uns tratam este fenômeno como procedimento psicológico e moral simplesmente, enquanto outros inserem ali procedimentos místicos os mais diversos.

Para acompanhar a exposição da dialética platônica, deve-se não perder de vista que seu autor fora discípulo de Sócrates, de quem herdou mesmo o método, com a diferença de o haver ajustado às novas concepções que forjou.

A ironia de Sócrates, pela qual se revelava a inconsciência das posições contrárias e mesmo a ignorância do adversário, encontra em Platão seu equivalente na purificação, em que o mundo é um ponto de partida e não o ponto de permanência.

A maiêutica socrática, pela qual se despertava a formação da noção universal, induzida de noções particulares, ou deduzida de princípios universais por meio do silogismo, se substitui em Platão pela intuição direta da idéia real, alcançada por um esforço denominado dialética do amor.

A indução e a dedução, aplicados na maiêutica de Sócrates, para alcançar os conhecimentos universais ou novos conhecimentos universais ou novos conhecimentos simplesmente, foram substituídos no método platônico pela simples intuição da idéia real, indução em que os sentidos já não servem como fontes e nem os silogismos como meios, mas apenas como ocasião e excitante do despertar da reminiscência.

A purificação de que fala Platão representa quase um morrer autêntico, no contexto pitagórico, que é o seu, a alma está encarcerada, e então o morrer é um libertar-se, numa exposição das mais comoventes, Platão colocou este pensamento na boca de Sócrates, enquanto aguardava a morte como um bem, por libertar a alma do corpo corrupto.

"Os homens ignoram que os verdadeiros filósofos somente se esforçam durante a vida com o fim de se prepararem para a morte. Diante disto, seria ridículo que, depois de haver procurado incansavelmente este único fim, começasse a retroceder com receio quando a morte se apresentasse" (Fedon 6 a).

Adiante: "O próprio do filósofo é trabalhar mais que os outros homens na separação de sua alma do comércio com o corpo" (Fedon 65 a).

Depois passa a expor os prejuízos dados pelo corpo à inteligência, e de como atinge a verdade sem recurso à matéria. Pergunta Sócrates a seu interlocutor Símias:

"Não lhe parece que é por meio da razão que a alma chega a conhecer a verdade?

Sim, responde Símias.

E não raciocina melhor quando não se encontra sob a influência da vista e do ouvido, da dor e da voluptuosidade, fechada sobre si mesma, prescindindo o corpo sem qualquer contato com o mesmo, no que for possível para se aplicar a conhecer o que é?

É exato, - de novo Símias.

Não é, então, sobretudo que a alma do filósofo despreza o corpo, foge do mesmo e trata de ficar a sós?" (Fedon 65 c-d).

Prossegue Platão, na boca de Sócrates, a explicar porque jamais possuiremos o objeto dos nossos desejos, - a verdade - enquanto estivermos com a alma contaminada pela corrupção do corpo:

"Efetivamente existe só um caminho para a razão se dirigir nas suas investigações: enquanto tivermos este corpo, e nossa alma esteja contaminada pela corrupção, jamais possuiremos o objeto dos nossos desejos, - a verdade. Porque o corpo opõe mil obstáculos em virtude de nos obrigar a cuidar dele; as enfermidades, que se apresentam, perturbam também as nossas investigações.

Além do mais, nos enche de amores, de desejos, de temores, de mil ilusões, e de toda a sorte de estupidezas, de maneira a confirmar-se o dito popular de que o corpo jamais conduz à sabedoria. Com efeito todas as guerras não têm outra origem do que na preocupação de amontoar riquezas a que o homem é levado por causa do corpo, para satisfazer seus caprichos e atender como escravo de suas necessidades.

Eis a razão porque não nos sobra tempo para pensar na filosofia, e quando encontramos algum ócio para pensar, intervém de repente nos nossos trabalhos e nos impede de discernir a verdade.

Fica, pois, demonstrado que se queremos efetivamente conhecer algo, é preciso dispensar do corpo, para que a alma a sós examine o objeto que deseja conhecer. Somente, então, gozaremos da sabedoria que aspiramos, o que apenas ocorrerá depois da morte, jamais durante a vida, porque então a alma pertencerá a ela mesma, livre desta carga, enquanto, que antes, não.

Mas enquanto pertencermos à vida, não nos será possível aproximar-nos da verdade, mais do que pudermos nos afastar do corpo e renunciar o comércio com ele... e nos conservar puros de todas as contaminações com ele, até que Deus mesmo nos venha redimir" (Fedon 66-67a).

Separada uma vez a alma de seu corpo, passaria mesmo a poder pensar? Uma das condições para pensar, é alcançar um objeto para pensá-lo.

Na filosofia de Aristóteles, que coloca o pensamento na dependência dos objetos oferecidos através dos sentidos, e depois pela memória, a alma não terá como pensar, porque já não tem os sentidos para apresentar objetos, nem a memória (sensível) para apresentar o que captou durante o correr de sua vida.

O problema da memória não foi diretamente abordado por Platão a propósito da reminiscência. Para que esta ocorra num espírito separado da matéria sensível, deveria existir na inteligência simplesmente, o que não parece acontecer.

Retornando o espírito ao estado puro, em consequência da saída do corpo, poderá manter a recordação da vida atual, apenas se, o que vivenciou, se tiver fixado na inteligência. A memória sensível não o acompanha após a morte.

Ocorre, portanto, aqui um hiato na doutrinação de Platão.