PERSPECTIVAS ONTOLÓGICAS DE RENÉ DESCARTES - RAFAEL ALEXANDRE FERREIRA

13/12/2012 21:13

O trabalho que segue abaixo é uma colaboração do Profº Rafael Alexandre Ferreira da Escola Estadual Vila Lucinda, pertencente a Diretoria de Ensino de Itu.

 

 

Perspectivas ontológicas de rené descartes

Rafael Alexandre Ferreira

 

resumo:

Considerando o trajeto do método cartesiano, este artigo mostrará a perspectiva ontológica de René Descartes frente à dúvida hiperbólica, ou exagerada, mas filosoficamente construída, a respeito do sucessivo questionamento acerca da veracidade das coisas que nos são apresentadas como verdadeiras. Para a elaboração deste trabalho será utilizado como base o livro “Meditações”. Um fator especial marca o pensamento deste Pensador moderno: o uso necessário da razão para justificar as perspectivas filosóficas sobre o ser. Considerações acerca do “gênio maligno” serão abordadas e nos ajudarão a entender que o que vemos no método cartesiano é a dúvida hiperbólica ou duvida metódica, uma postura filosófica exercida como habito mental, não para negar a possibilidade da verdade, tal como os céticos, mas como forma de estar certo do conhecimento, não enganado pelas ilusões ou pelos sentidos.

 

palavras-chave:

Descartes; Gênio maligno; Perspectiva ontológica; método cartesiano; substância; Cogito.

 

INTRODUÇÃO

A palavra ontologia é formada pela junção de dois termos gregos (“ontos” = “ser” e “logos” = “ciência”). Portanto, etimologicamente, ontologia significa “ciência do ser”. Percebemos então que a ontologia é uma ciência, mas em que sentido? Desde os primórdios da história da humanidade, os homens se perguntam pelo ser. Muitas respostas foram propostas e os filósofos se destacaram e ainda se destaca nessa atividade. A maneira como estes filósofos respondem a esta questão permite abstrair três critérios que norteiam a ciência ontológica (É claro que existem outras sutilezas e peculiaridades envolvidas, mas, geralmente, estes três critérios estão presentes na teoria ontológica): A pergunta pelo ser envolve, tanto quanto possível, a busca por respostas amplas, gerais que sejam válidas para todos os seres, para todas as coisas, para a totalidade de objetos, então, pelo critério da universalidade. Também é marcante, nesta atividade de investigação do ser, a procura por respostas que evidenciem a “verdade”, que sejam coerentes, coesas, lógicas, significativas, passiveis de serem públicas, discutidas e defendidas, que sejam forjadas por meio do critério da racionalidade. Tal investigação pelo ser também visam o critério da radicalidade, uma vez que almejam as “raízes” do que há, almejam aprofundar o conhecimento sobre o ser, ou mesmo conhecer as características básicas, elementares, fundamentais do ser. Mesmo que tais “raízes” possam não estar evidentes em uma primeira visada, nutre-se a crença que existam, que podem ser desveladas e expostas.

Etimologicamente percebemos que a ontologia tem o ser como objeto de estudo, mas em que sentido o ser é investigado pela ontologia?

O ser é alvo de várias problematizações e como objeto de estudo investiga: o que é ser? Quais as características fundamentais do ser? Que ser existe? O que é existir? (pergunta crucial para o Ontólogo), Se existe mais e um ser, eles são iguais ou diferentes? Todos os seres existem de um mesmo modo? E outros questionamentos. A ideia básica deste trabalho é apresentar as perspectivas ontológicas de René Descartes frente à dúvida hiperbólica, ou exagerada, mas filosoficamente construída, a respeito do sucessivo questionamento acerca da veracidade das coisas que nos são apresentadas como verdadeiras. O foco principal serão os argumentos utilizados por René Descartes para chegar a uma possível resposta, ou prova de que qualquer coisa possa existir sem tomar os sentidos como ênfase.

Rigorosa e ontologicamente falando, tudo que existe, deve receber a denominação, a predicação de ser. Por outro lado o que “não existe”, geralmente não é predicado denominado como ser. Assim, algo qualquer: uma música, uma obra humana qualquer, um homem, uma mulher, um animal, um vegetal, um mineral, etc. Pode ser predicado com o termo ser, uma vez que existe. O termo é abrangente, pois abarca tudo o “que existe”. É claro que nem todos concordam sobre o que existe. Há muitas sutilezas, conceitos e teses próprias da Ontologia que podem ser abordadas, mas não trataremos disso agora pormenorizadamente.

 

1 - Ontologia e seu contexto de surgimento

Que considerações podem ser feitas sobre o ser? É possível identificar o ser? Considerando a possibilidade de que existe mais de um tipo de ser, quais são os tipos que existem? E de que modo tais seres se distinguem? Estes questionamentos são intrínsecos da ontologia. Mas, o que é ontologia?

A palavra ontologia é formada pela junção de dois termos, onto e logia. Onto provém do termo grego ontos e significa ser. Logia provém do termo grego logos, e significa ciência. Portanto, etimologicamente, ontologia significa ciência do ser. Tal entendimento é básico, embora, obviamente, seja imperceptível perante tudo aquilo que ainda pode ser dito a respeito da Ontologia.

Dado o sentido etimológico do termo ontologia, forçoso nos é conhecer o contexto de aparecimento do termo e de que modo este foi pensado em relação à metafísica. Ferrater Mora (2001, p. 524) informa que Rudolf Goclenious (1547-1628) foi o primeiro a propor o termo Ontologia como “filosofia do ente”, em sua obra “Lexicon philosophicum” (1613, p. 16). Em outra referência, Corazzon (2008) defende que Jacob Lorhard (1561-1609), por meio de sua obra Ogdoas Scholastica, apresenta a primeira ocorrência da palavra Ontologia, já na capa da referida obra. Independente das discussões relativas ao pensador que propôs pela primeira vez o termo Ontologia, o ano de 1613 é a data aceita como de surgimento (mesmo ano de publicação das obras “Lexicon philosophicum” e Ogdoas Scholastica).

Depois de Goclenius, outros pensadores utilizaram o termo Ontologia como ciência que tem no ente ou no ser o seu objetivo de estudo. Destes, conforme Mora (2001, p.524), Johannes Clauberg (1622-1665) ganhou notoriedade por defender que a Ontologia tem o mesmo sentido que a metafísica, mas que é “mais apropriado” designar a primeira para referir a ciência que trata do ente.

O termo metafísica (do grego tá metá tá physika) significa as coisas que estão depois da física. Tal termo foi cunhado, na Antiguidade, por Andrônico de Rodes, no século I a. C., o qual, ao sistematizar as obras de Aristóteles (384-322 a.C.), designou um nome para quatorze livros que estavam depois das obras que tratavam da física. Nesta opção, Metafísica designava os escritos de Aristóteles que estavam além da física.

Seguindo este traço, o termo metafísica foi associado ao estudo do ser. Esta concepção prevaleceu reinante e indiscutível por quase 2000 anos, até surgirem posições, no século XVII, como a de Rudolf Goclenious, Jacob Lorhard e Johannes Clauberg, estes pensadores tinham em comum o uso do termo Ontologia, evidenciando que o termo metafísica, por si só, já não era mais tão suficiente para situar as investigações sobre o ser ou ente.

Neste contexto, Christian Wolff (1679-1754) popularizou a utilização do termo Ontologia, ao propor uma distinção da Metafísica, como Geral e especial com a finalidade de enfatizar a Ontologia como metafísica Geral, ou seja, como ciência que trata do ser em sua generalidade. Por outro lado, a metafísica Especial, indica que há ramos específicos do saber que também estudam o ser, não em sua “generalidade”, mas por escopos não tão amplos quanto o da Metafísica Geral Ontológica.

Assim, Wolff distinguiu estudos particularizados do ser, classificando-os como pertencentes à metafísica especial, como a Cosmologia (ao estudar os seres que compões o cosmos, o universo), a Psicologia (ao estudar o ser relativo à alma e as diferentes atividades racionais) e a Teologia (ao estudar o (s) ser (es) divino (s).

Ainda hoje, a discussão sobre a Ontologia e a Metafísica perdura. Diferente são as posições sobre a questão. Uns justificam, por exemplo, a impossibilidade de desenvolvimento de uma Metafísica, qualquer que seja. Por outro lado, há aqueles que pensam que a Metafísica é a própria razão de ser da Filosofia, sem a qual esta deixa de existir. Outros defendem que é possível uma ciência do ser, conforme o viés da Ontologia.

Se a controvérsia é certa, por outro lado, a um ponto de “mais” aceitação: o de que as investigações sobre o ser, representam o tema fundamental da Filosofia, uma vez que, os demais saberes consideram, consciente ou inconscientemente, direta ou indiretamente, o entendimento do ser como um pressuposto, no mínimo.  

 

1.2 - ONTOLOGIA, OUTRAS DEFINIÇÕES

Percebe-se que o termo Ontologia é abrangente, bem como suas definições:

 

1) Ciencia ou estudo do ser: especificamente, um ramo da metafísica relativa a natureza e as relações do ser, um sistema determinado de acordo com o qual os problemas da natureza de ser são investigados; primeira filosofia. 2) Uma teoria relativa aos tipos de entidades e, especificamente, aos tipos de entidade abstratas que são admitidos em um sistema de linguagem.

Definição disponível no Webster’s Third New International Dictionary (apud CORAZZON, 2008)

 

A ontologia consiste em uma parte da filosofia que estuda a natureza do ser, a existência e a realidade, procurando determinar as categorias fundamentais e as relações do “ser enquanto ser”. Engloba algumas questões abstratas como a existência de determinadas entidades, o que se pode dizer que existe, qual o significado do ser, etc. Os filósofos da Grécia Antiga Platão e Aristóteles estudaram o conceito que muitas vezes se confunde com metafísica. Na verdade, a ontologia é um aspecto da metafísica que procura categorizar o que é essencial e fundamental em determinada entidade. A “prova ontológica” é uma das provas clássicas sobre a existência de Deus, a partir da necessidade de existência que se atribui a Ele como Ser infinitamente perfeito. Já nas Ciências e Tecnologias de Informação, as ontologias são classificações. São usadas como um meio para categorizar ou agrupar as informações em classes. As ontologias também são aplicadas em Web Semântica e em Inteligência Artificial para assimilar e codificar o conhecimento, definindo as relações existentes entre os conceitos de determinado domínio (uma área do conhecimento).

 

Esta outra definição foi proposta por Christian Wolff (Preliminary discourse on philosophi in general, 1728, p.17 apud CORAZZON, 2008):

 

Existem algumas coisas que são comuns a todos os seres, as quais sçao predicadas tanto de alma quanto de corpos naturais e artificiais. A parte da filosofia que trata do ser, em geral, e das afecções gerais do ser é chamada Ontologia, , ou primeira filosofia. Assim a Ontologia, ou primeira filosofia, é definida como a ciência do ser, em geral, ou, do ser enquanto ser. Tais noções gerais são as noções de essência, existência, atributos, modos, necessidades, contingências, lugar, tempo, perfeição, ordem, simplicidade, composição, etc. Essas coisas não são devidamente explicadas pela psicologia ou física, porque essas ciências, assim como outras partes da filosofia, utilizam destas noções gerais e os princípios derivados dela. Por isso, é absolutamente necessário que uma parte especial da filosofia seja designada para explicar essas noções e princípios gerais, os quais são utilizados continuamente em cada ciência e arte, e até mesmo na própria vida, rigorosamente falando. Com efeito, sem ontologia, a filosofia não pode ser desenvolvida de acordo com o método demonstrativo. Mesmo a arte da descoberta considera os princípios da Ontologia.

 

A ontologia trata do ser enquanto ser. O termo “ser” era entendido univocamente, como se tivesse um só sentido. A ontologia pode consequentemente reivindicar ter como precursores João Duns Escoto e Guilherme de Ockham, e não Tomás de Aquino. No caso do próprio Wolff, Gottfried Wilhelm Leibniz foi mais influente do que a escolástica, mas na sua Philosophia Prima Sive Ontologia, Wolff refere explicitamente Francisco Suárez. Segundo Wolff, o método da ontologia é dedutivo. O princípio principal que se aplica a tudo o que é o da não contradição, que sustenta que uma propriedade do próprio ser é que não pode conjuntamente ter e não ter uma dada característica ao mesmo tempo. Daqui, pensava Wolff, seguia-se o princípio da razão suficiente, nomeadamente, que em todos os casos tem de haver alguma razão suficiente para explicar por que qualquer ser existe em vez de não existir. O universo é uma coleção de seres, cada um dos quais tem uma essência que o intelecto é capaz de apreender como ideia clara e distinta. O princípio da razão suficiente é invocado para explicar por que a algumas essências foi concedida a existência e a outras não. As verdades sobre os seres são todas necessárias.

 

A seguinte definição é considerada a única ocorrência da palavra ontologia nos escritos de Leibniz (Opuscules et fragments inédits de Leibniz, 1961, p.512 apud CORAZZON, 2008).

 

“Ontologia ou a ciência da coisa e do nada, do ser e não ser, da coisa e da modalidade da coisa, da substância e do acidente”.

 

Estas são algumas definições de Ontologia, mas obviamente, existem muitas outras.

 

2 - René Descartes

René Descartes (1596-1650) foi um filósofo e matemático francês. Autor da frase "Penso Logo Existo". É considerado o criador do pensamento cartesiano, sistema filosófico que deu origem a Filosofia Moderna. Sua preocupação era com a ordem e a clareza. Propôs fazer uma filosofia que nunca acreditasse no falso, que fosse fundamentada única e exclusivamente na verdade. Uma nova visão da natureza anulava o significado moral e religioso dos fenômenos naturais. Determinava que a ciência deveria ser prática e não especulativa.

A obra de Descartes, "O Discurso Sobre o Método", é um tratado matemático e filosófico, publicado na França em 1637 e traduzida para o latim em 1656. Em toda obra prevalece a autoridade da razão.

René Descartes (1596-1650) nasceu no dia 31 de março em La Haye, antiga província de Touraine, hoje Descartes, na França. Filho de Joachim Descartes, advogado e juiz, proprietário de terras, com o título de escudeiro, primeiro grau de nobreza. Era também conselheiro no Parlamento de Rennes na vizinha cidade de Bretanha.

René Descartes estudou no Colégio Jesuíta Royal Henry - Le Grand, que era estabelecido no castelo de La Fleche, doado aos jesuítas pelo rei Henrique IV. Na época o colégio mais prestigiado da França, com o objetivo de treinar as melhores mentes. Descartes estudou entre 1607 e 1615.

Formou-se em Direito pela Universidade de Poitiers. Dois anos depois, ingressou no exército do príncipe Maurício de Nassau na Holanda, onde estabelece contato com as descobertas recentes da Matemática. Aos 22 anos, começa a formular sua "geometria analítica" e seu "método de raciocinar corretamente". Rompe com a filosofia aristotélica adotada nas academias e, em 1619, propõe uma ciência unitária e universal, lançando as bases do método científico moderno.

Sua principal obra foi "O Discurso Sobre o Método" (1637), na qual apresenta a premissa de seu método de raciocínio, "Penso, logo existo", base de toda a sua filosofia e do futuro racionalismo científico. Nessa obra expõe as quatro regras para se chegar ao conhecimento: nada é verdadeiro até ser reconhecido como tal; os problemas precisam ser analisados e resolvidos sistematicamente; as considerações devem partir do mais simples para o mais complexo; e o processo deve ser revisto do começo ao fim para que nada importante seja omitido.

Em 1649, vai trabalhar como instrutor da rainha Cristina na Suécia. Com uma saúde frágil, morre de pneumonia no dia 11 de fevereiro de 1650.

Descartes radicaliza as interpretações tradicionais acerca da noção de substância em um momento específico, em que a Antiguidade e o Medievo são, reconhecidamente, períodos históricos passados. Um fator especial marca o pensamento deste Pensador moderno: o uso necessário da razão para justificar as perspectivas filosóficas sobre o ser. Não é por acaso que René Descarte e outros (Espinoza e Leibniz), são tradicionalmente considerados racionalistas.

O pai da filosofia moderna desenvolveu um método de pensamento inspirado na clareza e no rigor dos procedimentos matemáticos. Introduziu o cogito, a consciência pensante, no método filosófico e deu um papel metodológico para a dúvida e o ceticismo. Para Descartes, uma pesquisa que realmente busque a verdade deve começar duvidando de tudo o que é afirmado, até que o pesquisador encontre provas irrefutáveis para suas teses. Essas provas devem convencer racionalmente o próprio investigador e os demais, oferecendo alto grau de certeza às ideias. Descartes, ao tomar a consciência como ponto de partida, abriu caminho para a discussão sobre ciência e ética, sobretudo ao enfatizar a capacidade humana de construir o próprio conhecimento. O propósito inicial de Descartes foi encontrar um método tão seguro que o conduzisse a uma verdade indubitável. Procura-o no ideal matemático, isto é, em uma ciência que seja uma matemática universal, o que não significa aplicar a matemática no conhecimento do mundo, mas usar o tipo de conhecimento que é peculiar à matemática. Como sabemos esse conhecimento é inteiramente dominado pela inteligência e não pelos sentidos, e baseado na ordem e na medida o que lhe permite estabelecer cadeias de razão, para deduzir uma coisa de outra. Para tanto Descartes estabelece quatro regras:

·         Da evidência: acolhe apenas o que aparece ao espírito como ideia clara e distinta;

·         Da analise: dividir cada dificuldade em parcelas menores para resolve-las por partes;

·         Da ordem: conduzir por ordem os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para só depois lançar-se aos mais compostos;

·         Da enumeração: fazer revisões gerais para ter certeza de que nada foi omitido.

Descartes parte em busca de uma verdade primeira que não possa ser posta em dúvida. Começa duvidando de tudo: do testemunho dos sentidos, das afirmações do senso comum, dos argumentos da autoridade, das informações da consciência, das verdades deduzidas pelo raciocínio, da realidade do mundo exterior e da realidade do seu próprio corpo. Trata-se da dúvida metódica, porque é essa duvida que o impele a indagar se não restaria algo que fosse inteiramente indubitável. Por isso, Descartes não é um filósofo cético: ele busca uma verdade.

 

 

3 – O GÊNIO MALIGNO

 

“Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. Mas, parecendo ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu estivesse mais apto para executá-la. (...)”

“Tudo quanto tenho tomado até agora como o mais verdadeiro e seguro conhecimento aprendo por meio dos sentidos; ora, algumas vezes descobri que esses sentidos eram ilusórios, sendo prudente jamais confiar inteiramente naqueles que já nos enganaram uma vez”.

Meditações Metafisicas, R. Descartes – 1641.

 

A obra de Descartes inicia pelo óbvio, isto é, o questionamento dos fundamentos, a busca pela primeira certeza, a base sobre a qual assentamos todo o conhecimento. De que adiantaria tentar colocar os tijolos, o telhado, ou mesmo fazer a pintura de uma casa, se não estamos certos ainda de sua fundação? Se os alicerces não estão firmes e seguros, nada do que for construído a cima ficará em pé. O edifico do conhecimento humano proposto por Descartes parte da pergunta radical. Afasta as idéias já cristalizadas em nós, bem como os vícios. Como ele diz, estamos tão habituados à ilusão dos sentidos que percebemos o mundo crendo que estamos em contato direto com a realidade, quando na verdade podemos estar somente sonhando. Por exemplo; “Quantas vezes, à noite, não terei sonhado que estava neste lugar, vestido, junto ao fogo, quando na realidade estava despido em minha cama?” DESCARTES, René [1596-1650]. Meditações metafísicas [1641].

O que me garante estar vivendo a realidade neste instante? Posso confiar somente em meus sentidos para sustentar tal afirmação? Como posso ter a certeza de não estar sonhado, enquanto penso essas questões? Descartes chega a duvidar de que mesmo a sensação de si mesmo, como corpo ou indivíduo, seja segura. Afinal, existem sonhos que nos parecem tão reais aqueles dos quais acordamos e não temos a plena certeza de que estávamos dormindo ou despertos há poucos segundos. Não há, para Descartes, critérios que possam distinguir, com segurança, os estados de vigília e de sono. Mesmo havendo-se adiantado em vários séculos, Descartes relatou a existência de imagens oníricas (sonhos), procedentes da memória de nossas experiências cotidianas, quando estamos acordados, algo que Freud descreveria em fins do século XIX e inicio do XX. Não criamos ou fantasiamos os sonhos, simplesmente não lembramos ou associamos essa imagem enquanto dormimos, por isso nos parecem tão reais ao despertar, segundo Descartes.

A dualidade cartesiana estabelece uma forma de percepção do mundo, por um lado, na realidade física através dos sentidos e do corpo, por outro lado, nas representações mentais. Por isso, a Aritmética e a Geometria ocupam espaço importante no pensamento de Descartes como não sujeitas ao engano dos sentidos ou à mudança no tempo: “Pois, quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser suspeitas de alguma falsidade ou incerteza”. DESCARTES. Meditações, Meditação Primeira. Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1983. p. 87. (Os Pensadores). Em outras palavras, as verdades matemáticas não necessitam da experiência, enquanto outras percepções da realidade, sim. É destas certezas fundamentais que o pensador está em busca.

Descartes entendia que a verdade seria encontrada se o sujeito se voltar para dentro de si e afastado de tudo, ou seja, sem nenhuma ideia preconcebida por mestres e sem levar em conta os costumes. Vê-se bem o que caracteriza o racionalismo: a absoluta falta de contato com o mundo externo; nada de fora influencia a razão. Na Meditação Primeira, a solidão e a razão são os aliados de Descartes na sua busca pela verdade, pois ele se dá conta que muitas opiniões que considerava verdadeira, não o eram de fato. Assim, tendo esperado alcançar maturidade suficiente para se desprender de todas as suas antigas opiniões, percebeu que tentar provar a falsidade de suas crenças, uma por uma, seria uma empresa realmente extensa, quiçá interminável; encontrou, então, um método mais eficaz: a menor suspeita de incerteza presente em uma delas é suficiente para não aceitar todo o restante. O que era colocado em questão era o alicerce, os fundamentos de cada verdade estabelecida. Tudo passou a estar sob suspeita: “o menor motivo de dúvida bastará para rejeitas todas”. Tudo aquilo que é duvidoso é considerado falso. Tal procedimento distinguia-se da dúvida natural, em que o que é menos duvidoso tende a ser verdadeiro, ou seja, quanto mais provável mais o conhecimento está próximo da certeza. Descartes seguia o caminho oposto, na medida em que aquilo que ele negava era justamente o provável, pois ele considerava que o conhecimento devia ter um caráter necessário (assim como as verdades matemáticas). Muitas das opiniões tidas como verdadeiras lhe foram apresentadas pelos sentidos, os quais já o enganaram algumas vezes; desse modo, rejeitava toda crença nos conhecimentos provenientes deles, já que não eram uma fonte inteiramente segura.

Descartes negava a objetividade do mundo. Para ele, o que é oriundo da percepção perde a objetividade e torna-se uma mera aparência. Mas, ao pôr em dúvida o que vê, não coloca em dúvida a visão; ao colocar em dúvida o que ouve, não coloca em dúvida a audição; ao duvidar de um cheiro, não põe em dúvida o olfato. No fim, ele radicalizou a dúvida e colocou em questão até mesmo os sentidos, duvidou da gênese da percepção. Ainda assim, olhando para ele mesmo, percebeu que há coisas mais difíceis de serem postas em dúvida pelos sentidos, como o fato de ele estar onde está, vestido de determinado jeito, agindo de determinada forma. E se tais coisas não passarem de um sonho? Ou se tudo aquilo que vê – por exemplo, as próprias partes de seu corpo – não passarem de meras ilusões? Nesse momento ele já não conseguia mais distinguir o real do ilusório. O procedimento da dúvida consistia em não se fiar naquilo que já nos enganou ao menos uma vez. Assim, nossa percepção, nossos sentidos são postos em dúvida, uma vez que todos eles já nos enganaram. Em um primeiro momento, nossas ideias sobre as coisas é que são postas em dúvida, pois não é certo que elas representem aquilo que elas representam. Gradualmente vemos que há um alargamento nos estágios de dúvida: vai dos objetos exteriores até o sujeito mesmo; depois vai para a própria percepção, que é colocada em dúvida no argumento do sonho, não mais o conteúdo da percepção como no primeiro momento (duvidar dos conteúdos dos sentidos é fácil, duvidar dos próprios sentidos é mais difícil). Após esse argumento, o que resta são as ideias. Dessa forma, a dúvida segue crescendo e chega ao questionamento sobre a ideia que se tem de algo corresponder àquele algo na realidade.

Mesmo assumindo que tudo pode ser falso ou não passa de um sonho, existem coisas que não podem ser colocadas em dúvida; são certas qualidades presentes em tais imagens contidas no nosso pensamento, características como figura, quantidade, grandeza, números, tempo e espaço, isto é, os objetos da matemática. Coisas que são evidentes por sua própria natureza não seriam abarcadas pela dúvida, como os princípios lógicos. Nada que represente alguma coisa tem evidência, como o conhecimento humano; entretanto, o que se põe como condição de pensamento não se tem como questionar. Já não tendo mais degraus a subir em relação às dúvidas no campo empírico, ele chegou à dúvida metafísica. Houve uma ruptura. A realidade da matemática não é empírica, é algo ideal; sendo assim, ela não pode ser atingida pela dúvida hiperbólica. A dúvida visa à verdade, ela aparece nas Meditações como princípio de reflexão. Foi nessa incessante busca pela verdade que o filósofo lançou mão da hipótese da existência de um Deus Enganador que tivesse o poder de interferir até nas operações matemáticas; no entanto, levando em conta a suma bondade de Deus, julgar que tal Ser fosse causa de uma ação vil seria algo antinatural. Em seu lugar Descartes supôs a existência de um Gênio Maligno que tenha se dedicado a enganar os homens, desde as coisas mais prosaicas provenientes dos sentidos até as operações mais exatas oriundas da Matemática.

Ao considerar todo o mar de ilusão em que tal ente perverso tivesse nos afundado, Descartes encontrou pelo menos uma verdade que não podia ser distorcida: justamente o fato de que ele existe, pois, ao estar pensando em algo, por mais equivocado que seja o conteúdo de tal pensamento, é inegável que tal pensamento esteja sendo pensado por uma substância pensante – no caso, ele próprio. O que diferencia a dúvida metódica da dúvida cética é que, na primeira, quando se coloca algo em dúvida sempre resta algo, isto é, algo fica de fora, não é abarcado pela dúvida. O argumento do sonho acaba com tudo que vem do mundo da experiência; para combater o mundo da experiência são utilizados elementos do mundo da própria experiência.

Na dúvida metódica, ao duvidar de tudo que venha pelos sentidos – e até mesmo as verdades matemáticas ­–, não há como ser posta em dúvida a capacidade de duvidar; assim, ao ter tal consciência, tem-se também a certeza de própria existência. A dúvida metafísica, como vimos, é a suposição de que existe um Deus Enganador; desse modo, até coisas tidas como absolutamente certas – como os enunciados matemáticos – podem estar errados. Dessa forma, toda vez que somo 2 + 2 = 4, posso estar sendo vítima de uma ilusão incutida em mim por um Deus Enganador que me impede de enxergar o resultado verdadeiro de tal operação. Assim se chega à universalização da dúvida. Ao duvidar da matemática, Descartes estava duvidando do conhecimento racional. Como ele podia duvidar de algo que lhe parecia tão certo, como a razão? Descartes não sabia a origem da razão, algo de que só a existência de Deus podia dar conta.

Assim Descartes chegou ao cogito (“Penso, logo existo”), o primeiro princípio lógico-ontológico e não empírico, de onde tudo vai partir. É a primeira ideia clara e distinta que não pode ser colocada em dúvida pela razão lógica. Ao negar esse princípio, eu já estou duvidando, isto é, ao negar o cogito eu o reafirmo. Na terceira Meditação temos a noção de ideia; apesar de não haver garantia da veracidade dela, não se duvida de que as pessoas tenham ideias. A primeira verdade é afirmação do “eu penso” como sujeito.

Todas as coisas que concebemos clara e distintamente são verdadeiras, mas a hipótese do Gênio Maligno coloca isso em dúvida; é a hipótese da metafísica extrema. O que se sabe clara e distintamente é que se têm ideias. As dúvidas são sobre se existem realmente coisas fora de mim, se as ideias que eu tenho são realmente correspondentes ao que eu tenho fora de mim. E mesmo que minhas ideias sejam semelhantes ao que está lá fora, se eu não tenho como comprovar. Para isso, há que ter um fundamento, uma garantia para a racionalidade. Se Deus for um enganador, perde-se o fundamento da razão. A ideia não pode ser garantida como correspondência, mas há uma realidade objetiva, na medida em que o conteúdo dela tem realidade própria. Assim é que, na Meditação Terceira, Descartes falou de umas ideias que pareciam ter nascido com ele e de outras que pareciam ter vindo de fora. A despeito dessa diferenciação, para Descartes todas elas foram feitas por ele, não sendo dependentes dos objetos que representam.

Tomando as duas ideias que tenho do sol, por exemplo – uma proveniente dos meus sentidos, como sendo uma pequena bola amarela, e outra proveniente da Astronomia – apesar de nenhuma das duas condizer fielmente com o objeto, parece que a ideia colocada em mim pelas razões da Astronomia é a mais próxima do sol real. Ideias como a de um Deus soberano, eterno, perfeito, sumamente bom têm uma realidade maior que as que são as representações que tenho das substâncias finitas, pois, uma vez que somos efeitos de Deus, temos em nós marcas daquilo que nos causou; afinal, como poderíamos não ser produzidos por coisa alguma, já que, a partir do nada, nada pode ser gerado? Se eu existo, há que se ter em mim alguma coisa pelo menos daquilo que é causa da minha existência e, além disso, isso que é causa de mim deverá ter um grau de perfeição maior, da mesma forma que um quadro não pode ser ele mesmo mais perfeito do que aquilo que ele retrata.

Sendo assim, tenho como ideia clara e distinta aquela ideia que tenho de mim mesmo: uma vez que é certo que penso e, já que penso, existo. As ideias que compõem substâncias corporais como extensão, figura, lugar estão contidas em mim na medida em que é por meio delas que as substâncias corporais me aparecem. Incluindo aí a ideia de Deus – uma vez que eu, sendo substância finita, não teria como conceber a ideia de uma substância infinita, salvo se tal ideia tivesse sido colocada em mim por alguém mais perfeito que eu. [está ótimo; mas aqui falta um pequeno.

Desta maneira Descartes se pergunta: Não terá Deus criado tudo à nossa volta de uma maneira a me enganar? Haverá mesmo céu, terra, corpo extenso, grandezas, ou são simplesmente impressões de um Deus enganador, um gênio maligno criando a ilusão, inclusive das verdades matemáticas? Nas palavras do autor:

 

Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.

 

"Meditações". Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. (Col. Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 88-89.)

 

Portanto, o que vemos no método cartesiano é a dúvida hiperbólica (dúvida metódica), uma postura filosófica exercida como hábito mental, não para enganar a possibilidade da verdade, tal como os céticos, mas como forma de estar certo do conhecimento, não enganado pelas ilusões ou pelos sentidos.

Sem tomarmos outro rumo, tampouco, esse filósofo, classificando-o como ateu (coisa que não era), ou mesmo como se blasfemasse hereticamente seu Deus, ao questionar ser Ele um gênio maligno, um enganador. É precisamente aí que se encontra o seu atrevimento, a ousadia de romper com o período anterior e abrir uma nova janela na história. Descartes nos trouxe a modernidade ao tocar profundamente em temas espinhos sem qualquer preconceitos.

 

“Duvidar de si mesmo é o primeiro sinal da inteligência”

Ugo Ojetti (Itália, 1871-1946)

 

 

4 - DISTINÇÃO SUBSTANCIAL

 

O pensador francês define a substância como: o que existe por si só sem necessidade de outra coisa. Considerando essa definição, Descartes distingue a substância em três tipos de coisas: a res cogitans, a res extensa e a res infinita.

Neste momento é pertinente retomar um preâmbulo fundamental proposto por Descartes: A radicalização da dúvida metódica, a superação da atitude cética e o encontro de um princípio fundamental: existe algo, ‘eu’.

Nas Meditações Descartes se propõe a rejeitar todas as opiniões que tem, todos os exemplos desprovidos de análise e todas as aprendizagens provenientes do hábito, com o intuito de ouvir a razão e livrar-se de possíveis enganos. Decide, então, suspender os juízos acerca de qualquer opinião desprovida de análise. Contudo o pensador não imita a atitude cética de duvida contínua, mas duvida para destruir todas as suas opiniões equivocadas ou mal fundamentadas, todos os pensamentos confusos e mesmo o dogmatismo filosófico e adquirir experiências e evidências pertinentes à verdade.

Ao refletir sobre o que há, Descartes aplica a atitude da dúvida generalizada, pois duvida dos sentidos, das simples demonstrações matemáticas, de qualquer pensamento que tenha entrado em sua alma. Contudo, ele não pode negar que, enquanto duvida, pensa e, enquanto pensa, necessariamente existe. A existência de si mesmo, depois da duvida metodicamente desenvolvida, é considerada pricípio de sua filosofia. Nas Meditações, Descartes, com o intuito de fortalecer a hipótese de incerteza, da duvida, acerca das coisas que existem de um ‘gênio maligno’ que poderia existir com a finalidade de enganá-lo.

Após radicalizar a duvida metódica, Descartes concluiu a proposição: “Eu sou, eu existo”. É sempre verdadeira. Tal verdade diverge de perspectivas ontológicas realistas antigas ou medievais, pois encontra na subjetividade, no próprio sujeito que pensa uma verdade ontológica considerada irrefutável.

Conforme Da Silva (2003, p.115) “Descartes, com sua asserção original: ‘penso, logo existo’, inaugura um novo horizonte filosófico, o da subjetividade”. Já para Silva (2005), uma das noções fundamentais de que Descartes explora é o subjetivismo, e explica que (2005, p.12) “subjetivismo quer dizer apenas primado da subjetividade, precedência do sujeito no processo de conhecimento [...] significa [...] que o pensamento, metodicamente conduzido, encontra em si os critérios que permitirão estabelecer algo como verdadeiro”. O homem não se põe apenas diante das coisas para apropriar-se abstrativamente dos conteúdos de conhecimentos vinculados na relação sujeito/objeto, mas assume a tarefa de fundar na subjetividade todo e qualquer conhecimento.

 

Res cogitans: Significa coisa pensante que é aplicável à alma (ou espírito). A essência da substância pensante é o pensar. O pensar, por sua vez, se caracteriza por duvidar, conceber, afirmar, negar, conhecer, desconhecer, amar, odiar, querer, não querer, imaginar e, inclusive, sentir. O pensar não requer lugar, não depende de qualquer coisa material e ocorre obviamente na alma. Para a alma indivisível, pensar implica em existir; e, deixar de pensar implica em deixar de existir. Embora pense, a alma é imortal, após a radicalização da duvida a existência da coisa pensante e evidente.

Res extensa: Significa coisa extensa e é aplicável a todo corpo. A essência da substância extensa é sua extensão. A extensão evidencia-se pelo comprimento, largura e altura (ou profundidade) do corpo. Todo corpo e considerado divisível e móvel. Corpo, em sentido geral, está em um lugar, preenche um espaço e pode sentido pelo tato, visão, audição ou olfato. Embora o corpo tenha extensão, ele não pensa.

Res Infinita: significa coisa infinita e é aplicável a Deus. A essência da substância infinita identifica-se com a própria existência de Deus. Este é substância infinita, criadora, simples, completa, externa, imutável, independente, onisciente, onipotente, que, enquanto simples, não é ser composto. Por meio de Deus, ser primeiro e soberano, todas as coisas existem seja por criação ou por produção, ou seja, todas as coisas existem porque dependem de Deus, i. e., todos os demais seres não podem subsistir sem ele.

Na acepção própria do termo substância, tal como é definida por Descartes, apenas Deus o é, pois, existe por si independente de todas as demais coisas, criaturas, dependem de Deus. Explicitamente falando, a existências de todas as coisas pensantes (substâncias criadas) e de todas as coisas extensas (substâncias criadas) está amparada na existência de Deus, ser perfeito. A idéia de um ser perfeito, de Deus, é considerada inata e marca o indivíduo à medida que ele é criado por Deus. Ainda, as idéias dos indivíduos são consideradas reais e verdadeiras à medida que Deus é causa delas. Por outro lado, algumas idéias dos indivíduos são falsas porque estes são imperfeitos.

Conforme Garret (2008, 16-20), há varias versões do argumento ontológico acerca da existência de Deus. A primeira surgiu com Santo Anselmo (1033-1109), no século XI. São tomas de Aquino e Kant rejeitam tal argumento. Garret ensina que Santo Anselmo cometeu a “falácia da reificação”, por confundir um conceito que está na mente, embora o objeto não esteja. Hume, não admite tal argumentação, pois as mesmas assenta-se em bases racionais e desprovidas de experiência, logo incapazes de produzirem um conhecimento da realidade.

Em Descartes, Deus é fundamental para sua posição ontológica e, assim, ele propõe três provas relativas a tal existência: 1) Descartes reconhece que existe e não é perfeito, pois a atitude de conhecer é mais perfeita que a atitude que vem, desenvolvendo, a atitude de duvidar. A procura por um pensamento “mais perfeito” deve remeter para algo “realmente” perfeito. Em outras palavras, o perfeito não depende do menos perfeito. Considerando ainda que nada surge do nada, a idéia de um ser mais perfeito foi, obviamente, colocada em Descartes por ser mais perfeito, Deus, àquele que reúne todas as perfeições. Logo, Deus existe. 2)Descartes reconhece existir, ser uma substância finita e imperfeita. A causa de sua existência não pode ser ele mesmo, mas apenas Deus, criador e causa de todas as coisas. Logo, Deus existe. 3) Para Descartes a existência de Deus esta compreendida na sua própria essência, de ser perfeito. Enquanto perfeito, inviabiliza-se a possibilidade de Deus não existir, pois caracterizaria imperfeição (essa ultima prova é conhecida como uma versão do argumento ontológico). Logo, Deus existe. Diz o autor:

Pois assim como cremos pela fé que a suprema felicidade da outra vida consiste na contemplação da majestade divina, assim também experimentamos desde já que essa contemplação, embora decerto menos perfeita, pode nos dar o maior prazer de que somos capazes nessa vida.

 

4.1 - Existência do indivíduo e de outras coisas corporais

 

Para Descartes a natureza da alma (pensante) é completamente distinta da natureza do corpo (extensa), sendo substâncias distintas, mesmo contrárias. O pensador vai além e também expões que a alma humana pode estar temporalmente unida a um corpo, formando um ser composto. Neste caso, a alma e o corpo estreitamente vinculados, formam um único todo, um indivíduo. Além da existência do individuo e da existência de Deus, é posteriormente admitida como óbvia a existência de outras coisas, pois o indivíduo recebe confortos de outros corpos que o rodeiam. O indivíduo (composto por substâncias imperfeitas) é considerado imperfeito, incompleto e tem sua existência dependente de Deus.

O pensador admite que os sentidos exteriores enganam o indivíduo, surgindo inúmeros equívocos. Por exemplo, a observação de torres “redondas” de longe, mas que se revelam “quadradas” de perto. Além dos sentidos, a imaginação também não garante a verdade dos objetos. Quer o indivíduo esteja de perto, quer esteja acordado, só a razão legitima a verdade acerca do que há. Também em função da razão, reconhece-se que todas as idéias devem conter algum fundamento de verdade. Por outro lado, Descartes adverte acerca de um erro comum e básico: julgar as idéias existentes na alma como se simplesmente fosse conforme as coisas exteriores.

Descartes, nesse âmbito analítico, reconhece que é verdadeira toda coisa conhecida, clara e distintamente e toda concepção clara e distinta tem Deus como autor, como causa.

Ainda interessante lembrar que para René Descartes toda ideia representa alguma coisa e existem três tipos de ideia na alma: As inatas (por exemplo, a idéia de Deus); As adventícias (por exemplo, a idéia de sol); As inventadas (por exemplo, a idéia de sereia). Tais idéias dependem, de algum modo, de uma “realidade objetiva”. A realidade objetiva de uma idéia é garantida por uma “causa”. As realidades objetivas de algumas idéias não é causada pelo próprio indivíduo, mas por algo que existe. Descartes, ao falar da realidade objetiva, admite diferentes níveis de realidade. Neste sentido, diz que algumas ideias têm mais realidade objetiva (idéia de substância infinita, por exemplo, a ideia de Deus) do que outras (ideia de substância finita, por exemplo, a do corpo). Assim, há, sempre, mais realidade na substância infinita do que na substância finita. Descartes também expõe que o pensamento não impõe nenhuma necessidade real às coisas. Por outro lado, “Deus” garante: a) que coisas corpóreas existem; e b) que há causalidade entre as coisas (causas) e as respectivas ideias (efeitos), que há uma realidade objetiva que funda, garante, as ideias.

 

5 - “COGITO, ERGO SUM”

 

Na esteira do que até aqui foi apresentado, Descartes estava em busca de uma certeza sobre a qual pudesse se apoiar e construir o edifício do conhecimento, sem mais ter de se questionar com a dúvida hiperbólica.

Ocorreu-lhe algo tão simples quanto indubitável. Ora, se seguimos duvidando até a raiz do não duvidar, chegamos a conclusão de que “a única certeza que temos é a de que duvidamos. Se assim é, ou seja, se duvidamos, significa que pensamos, se pensamos, somos. É de onde nasce sua célebre frase: “Penso, logo existo (cogito, ergo sum). Por trás dessa sentença há um partido que deve ser esclarecido e compreendido. René Descartes, lança mão do conceito de postulado, isto é, algo que assumimos como verdade evidente sem a necessidade de comprovação. Seu cogito, como ficou conhecido, é uma verdade intuitiva, capaz de ser captada pelo espírito de forma imediata, sem a necessidade do uso do raciocínio ou de métodos discursivos. Simplesmente intuímos a existência de três lados de uma figura ao chamá-la e compreendê-la como um triângulo.

Parece algo simples, ou mesmo banal, mas o que nos quer provar este pensador é a possibilidade de o homem intuir conhecimentos sem a necessidade de raciocínios e muito menos dos sentidos, em sua divisão de res cogitans e res extenas. Em outras palavras, o homem é capaz de captar sua própria existência sem ter que prová-la (postulado), e sem haver apelado para o raciocínio ou para o seu próprio corpo. Chega a essa verdade intuitiva por meio do que chamou de evidência, uma verdade a que se acede sem a mediação de raciocínio, mas por pura intuição.

 

“Decidi fingir que tudo o que entrara no meu espírito até aquele momento não era mais verdadeiro do que as ilusões dos meus sonhos”. “...era preciso necessariamente que eu, que a pensava, fosse todavia alguma coisa. Por isso, dado que a verdade ‘eu penso, logo existo’ é tão irremovível e certa que não poderiam abalar nem mesmo as mais extravagantes suposições dos céticos, julguei poder aceitá-la sem hesitar como o princípio primeiro da minha filosofia...” “a proposição eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a pronuncio ou a concebo no meu espírito”. (Japiassu, 1990, p.51)

 

Esses trechos nos mostram a construção do primeiro postulado, a primeira certeza que Descartes intuiu para seguir com sua filosofia. O cogito passa a ser uma evidência capaz de ser aprendida pelo espírito (res cogitans), mas nada prova com respeito ao corpo (res extensa). O que seria o corpo então?

 

...por corpo entendo tudo o que pode ser delimitado por uma figura; que pode estar situado em qualquer lugar e preencher um espaço de modo tal que exclua qualquer outro corpo; que pode ser sentido pelo tato, pela vista, pela audição, pelo paladar, pelo olfato, que pode ser movido de muitas maneiras, não por si mesmo, mas por algo que lhe é estranho, pelo qual seja tocado e cuja impressão receba...

 

RENÉ DESCARTES. Obra escolhida. Introdução de Gilles-Gaston Granger. Prefácio e notas de Gérard Lebrun. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Difel, 1962, p. 124-136.

 

O francês coloca seu corpo em dúvida, mas não pode fazer o mesmo com respeito ao pensamento. Afinal, conclui que, se duvida, é porque pensa, se pensa, é porque existe. Mas o que seria ele, afinal, se não pode considerar como certo se quer seu corpo? “... eu não sou mais que uma coisa que pensa, ou seja, um espírito, um intelecto ou uma razão...”.

As verdades a que chega Descartes poderiam ser ditas inatas, uma vez que ele diz serem aprendidas pelo espírito sem a experiência ou a interferência dos sentidos, de seu corpo. São evidências imediatas para as quais não há a necessidade de raciocínio, tampouco. Esse tipo de teoria, postuladora de conhecimentos com os quais já nascemos, é chamada de inatismo, porém até aqui é o patamar que desejávamos alcançar.

 

 

CONCLUSÃO

 

O Método Cartesiano trabalha exclusivamente com a verdade, elimina todo o conhecimento inseguro ou sujeito a dúvidas. O objetivo desse método está fundamentado no princípio de duvidar de tudo até que se tenha uma resposta clara e evidente. Descartes propôs que sempre devemos duvidar de tudo em todos os momentos. Afirmava que era necessário distinguir o verdadeiro do falso. O método cartesiano põe em dúvida tanto o mundo das coisas sensíveis quanto o das inteligíveis, ou seja, duvidar de tudo, As coisas só podem ser apreendidas por meio das sensações ou do conhecimento intelectual. A evidência da própria existência – o "penso, logo existo" – traz uma primeira certeza. A razão seria a única coisa verdadeira da qual se deve partir para alcançar o conhecimento. Diz Descartes "Eu sou uma coisa que pensa, e só do meu pensamento posso ter certeza ou intuição imediata".

Para reconhecer algo como verdadeiro, ele considera necessário usar a razão, o raciocínio como filtro e decompor esse algo em partes isoladas, em idéias claras e distintas, ou seja, propõe fragmentar, dividir o objeto de estudo a fim de melhor entender, compreender, estudar, questionar, analisar, criticar, o todo, o sistema. Enfim experimentar na esfera da ciência e da razão, isto é estudar empiricamente, cientificamente, historicamente e racionalmente.

Para garantir que a razão não se deixe enganar pela realidade sensível, tomando como evidência o que de fato pode não passar de um erro de pensamento ou ilusão dos sentidos, Descartes formula sua segunda certeza: a existência de Deus. Entre outras provas, usa a idéia de Deus como o ser perfeito. A noção de perfeição não poderia nascer de um ser imperfeito como o homem, mas de outro ser perfeito, argumenta. Logo, se um ser é perfeito, deve ter a perfeição da existência. Caso contrário lhe faltaria algo para ser perfeito.

 

O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, o que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e que assim a diversidade das opiniões não convém de serem uns mais razoáveis do que os outros, mas somente de que conduzimos nossos pensamentos por caminhos diversos e não consideramos as mesmas coisas. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultura, 1973. Col. Os Pensadores, vol. XV.

 

O método seria um instrumento, que bem manejado levara o homem a verdade, esse método consiste em aceitar apenas aquilo que é certo e irrefutável e conseqüentemente eliminar todo o conhecimento inseguro ou sujeito a controvérsias. O objetivo de Descartes era de abranger numa perspectiva de conjunto unitário e claro, todos os problemas propostos a investigação cientifica.

O fundamento principal da filosofia cartesiana consiste na pesquisa da verdade, com relação à existência dos "objetos", dentro de um universo de coisas reais. O método cartesiano esta fundamentado no principio de jamais acreditar em nada que não tivesse fundamento para provar a verdade. Com essa regra nunca aceitara o falso por verdadeiro e chegará ao verdadeiro conhecimento de tudo.

Descartes parte do cogito (pensamento) que faz parte do seu interior, colocando em dúvida a sua própria existência para chegar a uma certeza sobre a concepção de homem, o qual faz um novo pensar sobre a problemática (homem) considerando duas principais substancias existentes, que são o corpo e a alma que se unem em uma união fundamental porem distintas entre si.

Sobre a questão do método Descartes afirma:

 

“O primeiro era não receber jamais como verdadeira qualquer coisa sem antes a conhecer evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir nos meus julgamentos nada que se não apresentasse tão clara e distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião de o por em dúvida. O segundo, dividir cada uma das dificuldades que tivesse que examinar no maior número possível de parcelas que se tornassem necessárias para melhor as resolver. O terceiro, em boa ordem os meus pensamentos, começando pelos objetivos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até ao conhecimento dos mais complexos, e admitindo mesmo certa ordem entre aqueles que não precedem naturalmente uns aos outros. E no último, fazer a propósito de tudo recenseamentos tão completos e revisões tão gerais que me sentisse certificado de nada omitir." DESCARTES. A Paixão pela Razão – Mário Sérgio Cortella. Editora FTD. São Paulo. 1998, pág. 49-62.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DA SILVA, M. B. Metafísica e assombro: curso de ontologia. 3. Ed. São Paulo: Paulus, 2003.

DESCARTES. A Paixão pela Razão – Mário Sérgio Cortella. Editora FTD. São Paulo. 1998, pág. 49-62.

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultura, 1973. Col. Os Pensadores, vol. XV.

DESCARTES, R. Discurso do método. [Os pensadores], São Paulo: Nova cultural, 2000ª.

DESCARTES, R. Meditações. [Os pensadores], São Paulo: Nova cultural, 2000b.

DESCARTES, René.  Meditações Metafísicas. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. (Coleção Pensadores), São Paulo: ed. Abril cultural,  1973.

DESCARTES, René. Meditações sobre filosofia primeira. Trad. Fausto Castilho. (Coleção multilíngües de filosofia UNICAMP), Ed. Editora UNICAMP, Cartesiana I.

DESCARTES, R. Princípios da filosofia. [Filosofia & ensaios], 3. Ed. Lisboa: Guimarães, 1984.

SILVA, F. L. e. Descartes: a metafísica da modernidade. [Logos], São Paulo: Moderna, 2005.

www.e-biografias.net/rene_descartes/ ;acesso em: 07de novembro de 2012.

 

 

 

 

 

ABSTRACT

Considering the path of the Cartesian method, this article will show the per-spective of ontological René Descartes front of hyperbolic doubt, or exaggerated, but philosophically constructed, about the subsequent questioning about the vera-city of the things that are presented to us as true. To prepare this work the need for research on the thinker in question (René Descartes), then it will be used as bases the book "Meditations." One factor thought this particular brand Modern Thinker: the use of reason necessary to justify the philosophical perspectives on the self. Considerations about the "malignant genius in" will be addressed and helped us understand what we see in the method cartesi-year is hyperbolic doubt or doubts methodical, practiced as a philosophical habit of mind, not to deny the possibility of truth, such as skeptics, but in order to be certain knowledge, do not be fooled by illusions or the senses.

KEYWORDS

Descartes; evil genius; ontological perspective; Cartesian method; substance; Cogito.