Uma Dimensão Ecológica na Escola pela Via da Autonomia: quebrando o estereótipo da (in)disciplina.

30/04/2013 09:05

 


Clodoaldo Moraes Penha, ofm*

 

Resumo

A ausência de um suporte teórico leva muitos professores a tratarem a questão da (in)disciplina a partir de concepções parciais, preconceituosas e moralistas, acreditando que a causa da indisciplina escolar está na família, que não educa, não impõe limites. A disciplina pretendida pelos professores não é aquela que potencializa o processo de ensino e aprendizagem ou o respeito entre os envolvidos nesse processo. Os atos de indisciplina salientados pelos professores geralmente se referem a um conjunto de normas arbitrárias, inconstantes, imprecisas, parciais, ideológicas, sendo deixadas em segundo plano as regras negociadas e necessárias à aprendizagem e interação em ambiente escolar. A superação do estereótipo da (in)disciplina por meio do desenvolvimento da autonomia requer a compreensão das interconexões existentes na dinâmica do processo pedagógico, bem como o conhecimento do desenvolvimento do juízo moral e afetividade que constituem a autonomia individual. Desse modo, a superação da (in)disciplina escolar a partir de uma perspectiva restrita se dá pelo desenvolvimento da disciplina interna, que envolve uma “disponibilidade para”, por parte dos envolvidos no processo pedagógico, bem como a percepção de que a ação educativa é um ato intencional a ser planejado.

 

 

Palavras-chave: (in)disciplina; autonomia; educação; juízo moral.

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Introdução

O debate ideológico contemporâneo apresenta-nos o conceito “sociedade pós-tradicional”, como sendo aquela na qual o homem é obrigado a abdicar da rigidez das idéias, atitudes e comportamentos fundamentados no sistema de valores tradicionais. Essa sociedade, na qual vivemos, tem suas características evidenciadas com a intensificação do processo de globalização[2], que coloca suas condições de sobrevivência, modificando as relações sociais, instituindo um novo paradigma, que também é educacional.

Há vinte anos, quando a hierarquia predominava nas relações sociais, inclusive nas educacionais, exigia-se obediência cega, humildade e concordância. Hoje, porém, exige-se o oposto, sendo a autonomia condição básica para conviver com os riscos, as incertezas e os conflitos socais.

 

 

As exigências desta sociedade não estão pautadas apenas nos livros, na Internet e nas técnicas, mas principalmente na pessoa de desempenho que incorpora seus valores, desafia, pesquisa, cria formas de convivência solidária e decide no constante confronto de novas demandas e novas responsabilidades. Essa é a “nova sociedade”, que deverá ser cada vez mais marcada pela produtividade, pela participação e pela autogestão fundada no conhecimento, e com preponderância da autonomia sobre a heteronomia taylor-fordista (SOARES; PEREIRA, 1998, p.2).

 

 

Segundo SOARES (1998), foi no mundo da produção, quando a racionalidade tecnológica colocou como pré-requisitos o domínio do conhecimento, a capacidade de decidir, de processar e selecionar informações, a criatividade e a iniciativa, que a autonomia surgiu como pré-requisito. Somente um indivíduo autônomo consegue manejar esses elementos, que diferenciam radicalmente o período pós-fordista do fordista. Porém, ao mesmo tempo em que esses pré-requisitos pressupõem indivíduos autônomos, acabam influenciando o desenvolvimento da sua autonomia.

Desse modo, a autonomia tornou-se uma necessidade material e ultrapassou a esfera da produção, envolvendo todos os domínios da vida contemporânea.

Assim, é também uma necessidade emocional, uma vez que é base para o desenvolvimento de uma comunicação efetiva, livre do uso da coerção e da retórica, numa sociedade em que o diálogo molda a política e as atividades, possibilitando discussões abertas rumo à definição da “confiança ativa”, que exige a “renovação de responsabilidade pessoal e social em relação aos outros” (GIDDENS, 1996, p.22, apud SOARES; PEREIRA, 1998). Sob esse prisma, pode-se afirmar que a falta de autonomia no âmbito psicológico inviabiliza as discussões abertas, gera violência e impede a manifestação plural, constituindo-se em uma afronta à autonomia do outro.

A autonomia é ainda uma necessidade sociocultural, já que a sociedade traz, em suas contradições produtivas, um amplo movimento cultural de ruptura e superação de velhas concepções, exigindo um redirecionamento das relações sociais e a elaboração de um novo comportamento, denominado reflexivo.

Nessa perspectiva, a autonomia se constitui em uma necessidade política, pois somente um indivíduo autônomo possui condições de entender as contradições do mundo globalizado, questionando-as e agindo no sentido de canalizar as oportunidades para mudanças qualitativas.

Esse contexto transforma a autonomia em uma condição de sobrevivência. Somente um indivíduo autônomo terá sucesso na sociedade pós-tradicional, nas esferas econômica, psicológica, sociocultural e política, pois é um indivíduo que interroga, reflete e delibera com liberdade e responsabilidade. Castoriadis (1987, apud SOARES; PEREIRA, 1998) corrobora com essa premissa. Para ele, somente um indivíduo autônomo é capaz de uma atividade refletida própria, e não de uma atividade que foi pensada por outro sem a sua participação.

Embora o desenvolvimento da autonomia esteja em consonância com o paradigma sociocultural vigente, a escola parece não perceber a importância de rever suas práticas, superando conceitos estratificados como o da regulação dos comportamentos em nome da “disciplina” escolar. Desse modo, mantém-se alheia às transformações sociais e abdica do seu papel no desenvolvimento da autonomia psicológica, contribuindo para a manutenção dos indivíduos no estágio denominado heteronomia, que nos adultos é representado pelo legalismo.

Por esse motivo, os envolvidos no processo pedagógico centram sua atenção na conquista da “disciplina escolar”, e, quando frustrados, buscam identificar as causas e os “culpados” pela indisciplina. Essa conduta faz com que o tema seja tratado de maneira imediatista, sem o circunstanciamento conceitual necessário, recaindo o ônus disciplinar na figura do aluno e, muitas

vezes, em sua família que, segundo os envolvidos no processo, não impõe  “limites”, é pouco participativa, etc.

Vale ressaltar que discutir questões relacionadas à (in)disciplina escolar requer um posicionamento em relação a como interpretar e administrar o ato considerado indisciplinado, compreendendo que essa recusa em moldar-se às regras institucionais pode se constituir em um juízo moral desenvolvido a partir da constituição da autonomia psicológica individual.

Assim, cabe aos envolvidos no processo educacional a revisão de suas práticas, desenvolvendo um novo foco de ação e superando antigas práticas baseadas na hierarquização e relações de autoritarismo, na regulação de comportamentos por meio da instituição de regras. Esse novo foco pode apresentar-se na preocupação de possibilitar o desenvolvimento da autonomia como um valor, como uma categoria central da essência da vida humana, que confere o poder de determinar os processos e as estratégias de ação, de escolher caminhos e alternativas, bem como objetivar desejos e ideais no sentido de efetivar a ação crítica nas mais diversas situações que a vida impõe, não só atender aos requisitos do mercado, mas também atuar como cidadão consciente no mundo globalizado.

Por meio de um processo democrático e colaborativo, a escola pode favorecer a autonomia individual e, conseqüentemente, a coletiva, contribuindo, dessa forma, para a formação de indivíduos conscientes e autores de seu próprio envolver histórico (CASTORIADIS, 1987, apud SOARES; PEREIRA, 1998).

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(In)Disciplina x Autonomia

 

(In)disciplina: concepções e conceitualizações

 

Os conceitos de (in)disciplina geralmente estão relacionados à concepção de educação denominada por Paulo Freire de “bancária” (1996, p. 27), na qual o objetivo principal é a transmissão de valores e conhecimentos de forma simplificada e fragmentada. Essa concepção anula a criatividade e poder de ação do aluno. Vale ressaltar que a disciplina imposta pelo professor é originária na ideologia liberal do século XVIII, com a função de aprisionamento e controle do homem (REBELO, 2002).

Nessa perspectiva, a indisciplina escolar é entendida como atitudes contrárias e ameaçadoras aos preceitos estabelecidos como verdades absolutas, impostos pelo currículo escolar aos integrantes do processo educativo. Desse modo, é representada tanto pelas atitudes passivas quanto pelas manifestações ativistas dos alunos, sendo que ambas denunciam a insatisfação desses em relação ao tipo de educação praticada na escola.

A insatisfação com o modelo de educação escolar é reforçada por Antunes (1999). Ele afirma que a forma contemporânea de sobrepor o “ter” ao “ser” acarreta conseqüências morais inevitáveis que se traduzem nas relações entre pais e filhos e entre alunos e professores. Para esse autor, a educação atual não reserva espaço para a ação moral, para o valor da palavra, o sentimento de ternura por uma causa distante, o valor da intimidade. Desse modo o que parece ser indisciplina constitui-se na disciplina desses tempos. Assim, a gênese da indisciplina não reside na figura do aluno, mas na rejeição inerente à escola, que não assume nem administra os novos modelos de existência social, de contemporaneidade.

Carvalho (1996) coaduna com esse pensamento e afirma que o conceito de disciplina escolar tem relação com a submissão do aprendiz às regras e estruturas do que pretende aprender ou à autoridade do mestre. Desse modo, as regras encontram seu significado como um caminho para aprendizagem. Assim, a verdadeira disciplina se define independentemente do contexto e se impõe como um objetivo único e universal para o qual devemos sempre tender ou do qual devemos sempre nos aproximar.

Já para Focault (1998, apud REBELO, 2002, p. 42-43), disciplina é uma técnica de exercício de poder elaborada em seus princípios fundamentais durante o século XVIII. Segundo esse autor, o sucesso do controle disciplinar se deve ao uso de alguns instrumentos como: olhar hierárquico, que permite o acompanhamento do que domina sobre o dominado; sanção normatizadora, que reduz desvios por meio da aplicação de castigos; exame, como uma ação normalizante que permite qualificar, classificar e punir, diferenciando e sancionando indivíduos.

A difusão das idéias desse século encontrava respaldo na disciplina escolar, que servia para manter a ordem e controlar as crianças por meio do ensino centrado no professor e conteúdos e da submissão e silêncio do aluno. Rebelo (2002) salienta que, infelizmente, séculos depois, nossas escolas ainda são estruturadas sob essa ideologia. A autora destaca como semelhanças: a organização espacial na sala de aula, a prática pedagógica, a hierarquização de funções, a relação interpessoal, a disciplina, a organização e funcionamento da escola e a avaliação.

Vasconcellos (1993, p.12) segue uma outra linha e apregoa a disciplina a partir de uma concepção libertadora. Para ele, “disciplina é auto-regulação do sujeito ou grupo, tendo em vista o objetivo a atingir”. Nessa concepção, o educador é o articulador da proposta e assume a responsabilidade pela disciplina apenas num primeiro momento, delegando-a à turma de modo progressivo. Desse modo, o parâmetro não é a autoridade do professor, mas as condições necessárias para o trabalho coletivo.

Assim, a disciplina se faz pedagógica, sendo entendida como organização, pois surge da autoridade (não autoritarismo), compromisso e competência docentes. Nessa prática, a finalidade da disciplina é a de ultrapassar os limites do espontaneísmo e do conhecimento como senso comum, colaborando para o desenvolvimento da autonomia intelectual e da autodisciplina. Essa disciplina é construída e assumida pelos alunos (REBELO, 2002; VASCONCELLOS, 1993).

Nesse contexto, disciplinar não é punir, mas estabelecer limites de modo dialógico, levando o aluno a perceber que a sinalização de um comportamento ou atitude considerados inadequados não interfere no sentimento de amor dos responsáveis por ele. A criança educada para receber disciplina acaba desenvolvendo a autodisciplina (NICOLA, 2000).

A ação disciplinada como um saber-fazer que se concretiza em um trabalho também é defendida por Carvalho (1996) e Sandi (2002). Nessa perspectiva, a disciplina implica a clareza de meios e objetivos para um trabalho, sendo vista como uma forma ou um método que deve ser incentivado no ambiente escolar. Ao estabelecer regras (constitutivas), formas de trabalho, disciplina, o professor não impede o aluno de criar, mas viabiliza um método para a criação.

Essa premissa pode ser reforçada com uma citação de Vasconcellos (1993), para quem o objetivo da “disciplina” é o autogoverno, a auto-regulação do indivíduo ou grupo, a partir da interação social, tendo em vista atingir um objetivo. É por meio da disciplina que são geradas as condições necessárias para o trabalho coletivo em sala e na escola, oportunizando o desenvolvimento da autonomia e da solidariedade, criando condições para uma aprendizagem significativa, criativa e duradoura. “Não se quer a disciplina formal da educação tradicional; mas também não a disciplina espontaneísta da educação moderna. Almeja-se uma disciplina consciente e interativa, marcada pelo respeito, responsabilidade, participação, construção do conhecimento, formação do caráter e cidadania” (VASCONCELLOS, 1993, p.38-39).

Sob esse prisma, a disciplina não é uma finalidade educativa em si e não pode ser puramente exterior, baseada num conjunto de regras de conduta, normas disciplinares e hierarquias rígidas. Ela não se institui pelo autoritarismo ou arbitrariedade, mas como condição indispensável a uma prática pedagógica de qualidade, oportunizando o desenvolvimento da autonomia consciente, o que contribuirá para uma intervenção social justa, honesta e comprometida.

 

 

Autonomia, uma problemática atual

 

A importância do desenvolvimento da autonomia ultrapassa a questão disciplinar, de regulação de comportamentos, e se insere em um contexto mais amplo, uma vez que, na sociedade atual, os indivíduos estão mergulhados na turbulência da incerteza, o que os leva a procurar soluções alternativas para o percurso da existência nos novos paradigmas sociais da cultura contemporânea.

100A reflexividade exigida pela sociedade globalizada aponta para a autonomia como condição de autodeterminação para conviver com os riscos, incertezas e conflitos, como um valor gerador de decisões e criador de possibilidades no manejo com o conhecimento.

Nessa perspectiva, a autonomia se refere às múltiplas capacidades do indivíduo, ao seu modo de viver e aos seus valores culturais; à luta pela sua emancipação e desalienação; à forma de ser, sentir e agir; à resolução de conflitos; ao fortalecimento em relação às suas próprias emoções, o que o torna capaz de se solidarizar com as emoções dos outros e, enfim, estar mais associado em suas ações (SOARES; PEREIRA, 1998).

A autonomia constitui, portanto, uma categoria central da essência da vida humana e, como tal, confere o poder de determinar os processos e as estratégias de ação, escolher caminhos e alternativas, bem como objetivar desejos e ideais no sentido de efetivar a ação crítica nas mais diversas situações.

Sobre o desenvolvimento da autonomia, vale ressaltar que, atualmente, muitas práticas educacionais enfraquecem as atitudes que a promovem, contrariando os valores da modernidade reflexiva e abstendo-se de qualquer iniciativa de concepção de liberdade e decisão livre (SOARES; PEREIRA, 1998). Assim, a educação escolar deve ser repensada segundo as exigências da atualidade, assumindo seu papel na formação da consciência crítica, disseminando a autonomia como valor central na defesa de um projeto de cidadania que promova a liberdade e a justiça.

Para que a escola se constitua em um espaço de desenvolvimento intelectual e da autonomia, é preciso que os envolvidos no processo educacional compreendam que o desenvolvimento dela é uma construção individual, mediada pela ação social; que estabeleçam e valorizem a comunicação dialógica (aluno, professor, assessor, gestor), propícia à criação de estruturas metodológicas mais flexíveis para reinventar sempre que for preciso; e que os educadores assumam sua função na construção colaborativa de conhecimentos, favorecendo situações de desenvolvimento individual pela desestruturação de hipóteses cognitivas instituídas. Essa ação mediadora requer conhecimento das teorias psicológicas e pedagógicas, algumas das quais relacionadas ao desenvolvimento da autonomia, que apresentamos a seguir, de forma sintética.

 

O desenvolvimento da autonomia

 

Piaget foi um dos primeiros a buscar a compreensão da moralidade humana em sua dimensão psicológica e no desenvolvimento da criança. Esse conhecimento viabiliza a liberdade orientada, que possibilita à criança fazer o que é capaz, contribuindo para que se conheça e se avalie e para que desenvolva competências condizentes com suas habilidades (NICOLA, 2000).

De acordo com Piaget (apud ARAÚJO, 2001), o indivíduo nasce no estado de anomia, isto é, sem conhecer nenhuma regra. Ao interagir com o mundo, percebe lentamente que elas existem. Em seguida, constrói o estado de heteronomia, quando entende que existem regras, mas elas têm origem externa, nas outras pessoas. Nesse processo de desenvolvimento psicogenético o próximo passo é a construção do estado de autonomia, quando as regras são internalizadas e percebidas como do indivíduo.

De acordo com os estudos de Piaget, a criança no estágio[3] sensório-motor (do nascimento aos 2 anos) é essencialmente individual, egocêntrica, “centrada no eu”, participando pouco de trocas sociais. A partir da aquisição da linguagem inicia-se uma socialização efetiva da inteligência. Entretanto, algumas características da fase pré-operatória (dos 2 aos 6 ou 7 anos) ainda limitam a possibilidade de a criança estabelecer trocas intelectuais equilibradas. Entre essas características ressaltam-se: ausência de instrumentos operatórios para se descentrar e poder se posicionar num outro ponto de vista, que não o seu, e a incapacidade de aderir a uma escala comum de referência, condição imprescindível ao verdadeiro diálogo. A criança segue as suas próprias regras, não sente necessidade de regular as diferentes condutas a partir de uma única referência e apresenta a tendência de eleger o ponto de vista próprio como absoluto (LA TAILLE, 1992; PERRAUDEAU, 1996). Essa centralização corresponde a uma ignorância a respeito do próprio “eu” e caracteriza falta de autonomia, que também se faz presente em crianças de 6 a 7 anos, para quem as regras morais são imutáveis.

As trocas intelectuais iniciam-se no estágio operatório (operações concretas dos 6 aos 11 anos e operações formais a partir dos 11-12 anos). É nesse estágio que a criança alcança o que Piaget (apud LA TAILLE, 1992) denomina personalidade: o indivíduo submetendo-se voluntariamente às normas de reciprocidade e de universalidade. Assim, a personalidade se constitui no produto mais refinado da socialização, uma vez que o “eu” renuncia a si mesmo para inserir seu ponto de vista próprio entre outros, submetendo-se às regras de reciprocidade. A personalidade traz em si a tomada de consciência da relatividade da perspectiva individual, colocando-a em relação ao conjunto das perspectivas possíveis, numa coordenação da individualidade com o universal.

Nesse contexto, autonomia é ser capaz de se situar de modo consciente e competente na rede dos diversos pontos de vista e conflitos presentes na sociedade.

Para chegar à autonomia o indivíduo passa por três etapas distintas. A primeira etapa é a da anomia, em que as crianças (5 a 6 anos) não seguem regras coletivas. A segunda etapa é a da heteronomia (até 9 ou 10 anos, em média), em que há um interesse em participar de atividades coletivas e regradas, embora a criança não conceba as regras como um contrato firmado, sendo estas percebidas como estipuladas por outros, sem possibilidade de alteração ou negociação. Em contrapartida, é nessa etapa, também, que a criança introduz variantes às regras que lhe possibilitem melhor desempenho. A criança heterônoma não concebe as regras como necessárias para regular e harmonizar as ações de um grupo social, atribuindo-lhes uma origem estranha à atividade e aos membros do grupo, bem como uma imutabilidade definitiva. A terceira, e última etapa, é a da autonomia, em que as regras são concebidas como decorrentes de acordos mútuos entre os membros do grupo, sendo respeitadas e “negociadas” por eles (LA TAILLE, 1992; PIAGET, 1964).

Para Piaget (apud LA TAILLE, 1992), a autonomia relaciona-se ao desenvolvimento do juízo moral, que se inicia pela aprendizagem de diversos deveres impostos pelos adultos à criança (não mentir, não pegar as coisas dos outros, etc.). Essa imposição é possível na fase da heteronomia, uma vez que a criança aceita as regras concebendo-as como inquestionáveis. Para esse estudioso, a heteronomia se traduz pelo realismo moral em que

 

[...] é considerado bom todo ato que revela uma obediência às regras ou aos adultos que as impuseram; é ao pé da letra, e não no seu espírito, que as regras são interpretadas; há uma concepção objetiva da responsabilidade, ou seja, julga-se pelas conseqüências dos atos e não pela intencionalidade daqueles que agiram (PIAGET, apud LA TAILLE, 1992, p.51).

 

Nessa perspectiva, a heteronomia expressa pelo realismo moral corresponde a uma fase na qual as normas ainda não são elaboradas ou reelaboradas pela consciência, não sendo entendidas a partir de sua função social. O dever significa obediência a uma lei revelada e imposta pelos adultos, sendo as suas razões desconhecidas. Por esse motivo, não são consideradas como critério para o juízo moral (LA TAILLE, 1992; PIAGET, 1964).

O realismo moral é superado na fase da autonomia moral (por volta dos 9 ou 10 anos). Nessa fase, os deveres são compreendidos como decorrentes de obrigações mútuas que implicam acordos entre as consciências e não apenas a conformidade das ações a determinados mandamentos. Enquanto na heteronomia o dever determina o bem, na autonomia o bem determina o dever: deve-se agir de determinado modo porque é bom (LA TAILLE, 1992).

A autonomia moral engloba a noção de justiça, honestidade e reciprocidade que, em geral, constituem um sistema racional de valores (PIAGET, 1964). Para Bergson (apud LA TAILLE, 1992) essa noção envolve idéias de proporção, peso, compensação, igualdade, reciprocidade e equilíbrio. Na fase da autonomia moral, a criança já separa a noção de justiça daquela de autoridade.

Desse modo, pode-se afirmar que a justiça ultrapassa o dever que “se cumpre”, uma vez que a justiça “se faz”; representa um ideal, uma meta, algo a ser conquistado, um bem a ser realizado. Isso requer do indivíduo um posicionamento, uma tomada de decisão a partir da avaliação e interpretação das diversas situações.

Na fase da heteronomia, a justiça se confunde com a lei, com a autoridade. A criança (até os 8 anos) acredita que a justiça retributiva (sanção) segue-se a todo delito, sendo aplicada tanto pelo adulto quanto pela natureza, prevalecendo a sanção expiatória (o “castigo” é estranho ao delito), pois, segundo os estudos de Piaget, durante a fase da heteronomia as sanções de reciprocidade fazem pouco sentido no universo moral. A criança heterônoma se mostra extremamente severa, quanto mais duro o castigo, mais justo é.

A partir dos estudos de Piaget, pode-se concluir que o sujeito participa ativamente de seu desenvolvimento moral, sendo esse entendido como um fato social.

As fases de anomia, heteronomia e autonomia identificadas por Piaget como estágios do desenvolvimento do juízo moral relacionam-se ao desenvolvimento cognitivo, sendo, portanto, possível relacionar cada uma dessas fases à determinada faixa etária. Entretanto, vale ressaltar que, em seus estudos, Piaget reconhece que em algumas pessoas o sentimento de obediência ao dever, o caráter sagrado das normas e regras sociais, a opção por sanções expiatórias e o reconhecimento de uma autoridade normatizadora permanecerão a vida toda, sendo as expressões infantis do realismo moral sucedidas por outras mais elaboradas, mas de mesmo caráter, o legalismo – raciocínio moral a partir de um conjunto de regras estabelecidas socialmente (LA TAILLE, 1992).

Lauwrence Kohlberg, psicólogo e filósofo americano (1926-1987) seguidor de Piaget, resgatou a noção do indivíduo moralmente consciente e validou a teoria do desenvolvimento do juízo moral (estruturalismo genético, também denominada cognitivo-estruturalista), por meio de pesquisas interculturais no campo da moralidade infantil (SANDI, 2002; MARTINS, 2003). Ele constatou que, independentemente da cultura ou grau de desenvolvimento das sociedades, as crianças constroem a consciência moral seguindo uma seqüência determinada, invariante e universal de estágios, sendo que cada um deles apresenta características típicas. Além disso, cada estágio hierarquicamente superior é mais complexo, mais diferenciado, mais competente para resolver os problemas e incorpora o estágio anterior, por meio da reconstrução, a partir de novos esquemas[4] de condutas anteriormente adquiridas. A passagem de um estágio a outro se dá por meio de dois mecanismos complementares do processo de adaptação do organismo ao meio físico e social: a assimilação e a acomodação.[5]

Tanto para Piaget quanto para Kohlberg, a consciência moral não se encontra no sentimento (como para Rousseau), mas na razão. Eles defendem a tese da gênese gradativa da consciência moral e da possibilidade de educá-la. A psicogênese da moralidade infantil significa o gradual afastamento da consciência infantil da heteronomia moral, das regras do grupo, em direção à autonomia.

Em sua teoria, Kohlberg postula seis estágios morais, distinguindo três grandes níveis de moralidade: o pré-convencional, o convencional e o pós-convencional (apud SANDI, 2002; MARTINS, 2003).

No nível de moralidade pré-convencional existe a percepção das regras sociais, porém o certo/errado e o mal/bem estão vinculados diretamente à punição, recompensa, troca de favor ou poder físico dos que formulam as regras. Este nível contém os estágios das morais 1 e 2.

No estágio da moral 1, estágio do castigo e da obediência, da moralidade heterônoma, a orientação sociomoral é egocêntrica. O valor moral defendido é o da obediência às regras e à autoridade. O correto é evitar infringir as regras, obedecer por obedecer e evitar causar danos físicos a pessoas e propriedades. A justificativa dos julgamentos centra-se em evitar o castigo e o exercício do poder superior que as autoridades têm sobre o indivíduo.

No estágio 2, estágio do objetivo instrumental individual e da troca, o valor moral defendido é o de seguir as regras quando for de interesse imediato. O correto é agir para satisfazer os interesses e necessidades próprias e deixar que os outros façam o mesmo. O correto também é o que é eqüitativo, ou seja, uma troca igual, uma transação, um acordo. A justificativa dos julgamentos baseia-se em servir a necessidades e interesses próprios em um mundo em que há outras pessoas com seus interesses. Nesse estágio, a orientação sociomoral é dita individualista concreta.

No nível de moralidade convencional, o indivíduo preserva, apóia e justifica uma ordem social, sendo leal, identificando-se com as pessoas ou grupos dos quais participa. É composto pelos estágios das morais 3 e 4.

No estágio da moral 3, estágio das expectativas interpessoais mútuas, dos relacionamentos e da conformidade, os valores defendidos estão pautados na preocupação em desempenhar o papel de uma pessoa boa (amável), em preocupar-se com os outros e seus sentimentos, em ser leal e manter a confiança dos parceiros, em estar motivado a seguir as regras e expectativas. A justificativa dos argumentos precisa corresponder às expectativas alheias. Tem necessidade de ser bom e correto a seus olhos e aos olhos dos outros (família, amigos etc.); importa-se com os outros: se trocasse de papel, desejaria um bom comportamento de si próprio. Esse é o estágio da regra de ouro: haja com os outros como gostaria que eles agissem com você. Surge aqui a perspectiva sociomoral do indivíduo em relação aos outros indivíduos.

Já no estágio 4, estágio da preservação do sistema social e da consciência, os valores defendidos envolvem o fazer seu dever na sociedade, apoiar a ordem social, manter o bem-estar da sociedade ou do grupo, cumprir os deveres com os quais se concordou, apoiar as leis. A justificativa dos argumentos relaciona-se ao manter o funcionamento das instituições como um todo, ao auto-respeito ou consciência compreendida como cumprimento de obrigações definidas para si próprio ou consideração das conseqüências dos atos. Pergunta-se “o que acontecerá se todos fizerem o mesmo?” Nesse estágio, tem-se, como orientação sociomoral, o ponto de vista de que o sistema define papéis ou regras. As relações individuais são consideradas em termos do lugar que ocupam dentro do sistema.

O último nível de moralidade é o pós-convencional, no qual existe um empenho para definir princípios e valores morais não dependendo de autoridade para a sua sustentação e da identificação do sujeito para com essa autoridade. Contém os estágios das morais 5 e 6.

No estágio da moral 5, estágio dos direitos originários, do contrato social ou da utilidade, são valores defendidos: sustentar o direito, valores e contratos sociais básicos de uma sociedade, mesmo quando em conflito com regras e leis concretas do grupo. Além disso, reconhece-se que os valores variam de cultura para cultura, mas que existem valores e direitos não relativos, como o direito à vida e à liberdade que devem ser defendidos independentemente da opinião da maioria. Nesse estágio, são justificativas da argumentação: a obrigação de cumprir a lei em função de um contrato social que protege seus direitos e os dos outros. Nesse sentido, as leis e deveres são baseados em cálculo do maior bem para o maior número de pessoas (critério da utilidade). Aqui, na orientação sociomoral, o ponto de vista prioritário é o da sociedade. Se há conflito entre o ponto de vista moral e o legal, não se consegue integrá-los.

O estágio 6, estágio dos princípios éticos universais, tem como valores defendidos: seguir o princípio ético universal de justiça que engloba os conceitos de dignidade inviolável da humanidade; de liberdade; solidariedade e igualdade. As leis são válidas se seguirem esses princípios; se violarem esses princípios, não se deve obedecer a elas, pois o princípio é superior à lei. Assim, os princípios têm validade independentemente da autoridade de grupos ou pessoas que os sustentem e da identificação do sujeito com essas pessoas e grupos. Nas justificativas da argumentação, tem-se o homem como ser racional, que percebe a validade dos princípios e compromete-se com eles. A orientação sociomoral parte do ponto de vista moral, autônomo, do qual derivam os ajustes sociais. É o ponto de vista do indivíduo racional que reconhece a natureza da moralidade e do respeito pelos outros como fim e não como meio de chegar a alguma coisa.

Segundo Kohlberg, a estruturação do pensamento lógico formal (último estágio da psicogênese do pensamento lógico) é uma condição necessária, mas não suficiente para se atingir o nível da moralidade pós-convencional. Por esse motivo o indivíduo não se contenta com o paralelismo, defendido por Piaget, entre moral e lógica. O equilíbrio moral no nível pós-convencional é garantido por dois processos mais complexos que o pensamento lógico formal: o julgamento moral, como a tomada do ponto de vista dos outros, concebidos como sujeitos, e a coordenação desses pontos de vista; e o princípio de justiça (MARTINS, 2003). A partir de seus estudos, Kohlberg conclui que

 

[...] o desenvolvimento moral completo pressupõe que o indivíduo tenha chegado ao último estágio do desenvolvimento cognitivo, isto é, o estágio do pensamento formal, com o domínio das estruturas lógico-matemáticas. Mas que essa condição necessária não é suficiente para que ele seja capaz de fazer julgamentos morais no nível pós-convencional (MARTINS, 2003),

 

 

Embora a teoria dos estágios psicogenéticos seja válida para todos os indivíduos, independentemente do momento histórico, do contexto cultural e do nível socioeconômico, tanto Piaget quanto Kohlberg observaram um grave problema: a decalagem vertical – desnível de estágios entre grupos de crianças da mesma faixa etária – e a horizontal – a estrutura do pensamento não resolve todos os problemas para os quais teria competência (apud MONTAGERO; MAURICE-NAVILLE, 1998). Esse fato decorre de interferências negativas do meio que têm condições de bloquear ou retardar o ritmo da psicogênese, temporariamente. Vale ressaltar que, isoladas essas interferências, os grupos bloqueados completam a sua psicogênese.

Kohlberg tem dificuldade em demonstrar o nível pós-convencional da moralidade em culturas ágrafas ou grupos menos letrados (MARTINS, 2003). Todos indivíduos tendem a ascender, dentro de um certo ritmo, mas, via de regra, os da classe média alcançam níveis superiores (tomando como critério a idade) do que os indivíduos da classe trabalhadora. Desse modo, a decalagem não é uma distorção da teoria, mas a institucionalização de desigualdades sociais que devem ser corrigidas.

Definidos os estágios e tendo criado uma metodologia capaz de diagnosticar em qual deles as pessoas se encontram, Kohlberg propõe modos de interferência na passagem de um estágio para outro, possibilitando que as pessoas desenvolvam sua capacidade de fazer julgamentos morais. Desse modo, organizou uma proposta capaz de ajudar os alunos a atingir patamares superiores da consciência moral por meio de um programa de educação moral para a solidariedade e cooperação em escolas e universidades, assegurando a construção de estruturas de raciocínio (lógico e moral) mais equilibradas, competentes e integradas (MARTINS, 2003).

As avaliações em relação a esses programas de educação moral divergem. Algumas aprovam, outras criticam. O fato constatado e admitido pelo próprio pesquisador é de que encontrou dificuldade de transpor, com auxílio desses programas, o nível da moralidade convencional para o nível pós-convencional (MARTINS, 2003).

A psicologia contemporânea, no que diz respeito à questão do desenvolvimento do juízo moral, contribui para a reflexão sobre a (in)disciplina escolar, uma vez que estabelece relações entre a lógica e a moral, que apresenta a construção da moralidade em estágios em uma seqüência invariante e universal.

Nesse contexto, os processos de construção e reconstrução das regras sociais necessitam de uma tomada de consciência, que envolvem a descentração (diferenciação do eu e do grupo), a cooperação (validação das regras por todos os envolvidos, democraticamente), a reciprocidade (compromisso de todos em respeitá-las), o princípio da ação (criação de uma regra ideal) e a noção da justiça (MARTINS, 2003).

 

Os fatos que promovem a gênese das estruturas morais localizam-se no interior do sujeito (maturação biológica e equilibração das estruturas mentais) e no contexto social (socialização e transmissão cultural). Logo, sem moralidade, sem regras socialmente constituídas o sujeito sucumbiria à tirania ou estabeleceria a anarquia. Somente uma transformação no tipo das relações estabelecidas dentro das escolas, das famílias e da sociedade reposicionaria o problema da indisciplina, relações essas que tenham como princípios os ideais democráticos de justiça e igualdade auxiliando o sujeito a agir conscientemente com a base nesses princípios, e não por obediência (SANDI, 2002, p.45).

 

As relações escolares e o desenvolvimento da autonomia

 

Assim como na sociedade, as relações entre os envolvidos no processo educacional caracterizam-se como um conjunto de relações interindividuais, que podem ser de coação ou cooperação.

A relação de coação é uma relação assimétrica, na qual um dos pólos impõe ao outro suas formas de pensar, seus critérios, suas verdades. Nessa relação não há reciprocidade pelo fato de se caracterizar como uma relação constituída, sendo as regras apresentadas, instituídas sem o envolvimento do grupo. O que foi imposto permanece exterior à consciência, caracterizando-se como uma “coisa” na qual se acredita.

Para Piaget (apud LA TAILLE, 1992) as relações de coação são contraditórias ao desenvolvimento intelectual dos indivíduos a ela submetidas, uma vez que o indivíduo coagido tem pouca participação racional na produção, conservação e divulgação de idéias, o que impossibilita o desenvolvimento das operações mentais, que decorre de uma necessidade sentida pelo sujeito.

A coação corresponde a um baixo nível de socialização, uma vez que não há diálogo verdadeiro: um fala e o outro se limita a ouvir e memorizar. Assim, nenhum dos participantes do diálogo necessita se descentrar, permanecendo isolados em seus pontos de vista. Ao coagido cabe aceitar as “verdades” impostas, sem verificar a partir de que perspectivas foram elaboradas, sem compreender essas “verdades” e a “autoridade”, porque não necessita ouvir o outro, nem relacionar as “verdades” transmitidas a um contexto real.

Nessas relações encontra-se a gênese do sentimento de obrigatoriedade, de dever. No caso específico das crianças, reforça o egocentrismo no que diz respeito à dificuldade em se colocar no ponto de vista do outro, estabelecendo com este a reciprocidade. Assim, o indivíduo está condenado a muito crer e nada saber (ROUSSEAU apud LA TAILLE, 1992).

Em relação ao desenvolvimento do juízo moral, nas relações de coação há o respeito unilateral pela lei imposta ou pela autoridade que a revelou, levando a uma distorção das razões de ser das diversas regras (realismo moral). Assim, da coação deriva a heteronomia moral. Duc

As relações de coação compreendem a moral como exterior aos indivíduos e imposta a eles pela sociedade, desse modo garantem uma “moral comum”, na qual cabe ao indivíduo adequar-se ao padrão de comportamento estabelecido. Nesse contexto, as diferenças individuais são consideradas inadequações parciais em relação à norma comum (LA TAILLE, 1992).

A superação da coação se dá pela relação de cooperação (co-operação), que é simétrica, regida pela reciprocidade. Por esse motivo, é constituinte, derivada de acordos mútuos entre os participantes, sendo as regras construídas coletivamente. Esse tipo de relação exige que os indivíduos se descentrem para compreender o ponto de vista alheio (coordenar o ponto de vista próprio com o do outro). Da cooperação, derivam o respeito e a autonomia, o desejo pelo bem como uma aspiração, um ideal de modo essencialmente racional. Sob esse prisma, o equilíbrio social não se restringe à padronização dos comportamentos, estruturando-se a partir da coordenação das diferenças existentes, gerando uma “moral comum” em constante modificação (LA TAILLE, 1992).

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que, ao optar por uma relação de coação, a escola fornece um modelo de comportamento a ser seguido, necessitando de uma figura de autoridade que garanta a instituição das regras preestabelecidas, bem como a aplicação de sanções nos casos em que estas não forem cumpridas. Assim, contribui pouco para o desenvolvimento do juízo moral, ocasionando a manutenção do aluno na fase da heteronomia.

Em contrapartida, ao estruturar sua prática a partir de uma relação de cooperação, a escola estabelece um método, uma forma de gerir as relações interpessoais entre os envolvidos no processo educacional, principalmente entre o professor e o aluno. Desse modo, as experiências de cooperação contribuem para a educação moral do aluno, uma vez que são essas experiências que determinam o bem, o modo de agir, a partir de valores abstratos como a dignidade pessoal e o respeito pelo ponto de vista do outro. Dessas experiências surgem as “regras” que gerenciam as relações interpessoais na escola, como contratos que têm valor por permitirem a coordenação mútua de diferentes perspectivas e ações.

Vale ressaltar que o método coercitivo, embora seja inevitável no início da educação moral da criança, devido à assimetria na relação adulto/criança, não deve ser exclusivo. A conquista da autonomia se dá por meio das relações de cooperação. Assim, a escola deve respeitar e aproveitar as relações de cooperação que surgem espontaneamente entre as crianças, utilizando o trabalho em duplas e grupos como uma alternativa pedagógica e valorizando as noções de igualdade e respeito mútuo efetivadas entre as crianças e em outros relacionamentos que incluam o adulto e a criança.

Nesse contexto, cabe ao professor querer ser cooperativo, sendo que essa escolha depende de uma atitude moral que engloba o valor ético da igualdade, da liberdade, da democracia; o valor dos direitos humanos.

Dessa postura, decorre o abandono do papel de autoridade, uma vez que a cooperação permite que a autoridade seja questionada em nome da razão. Assim, o professor passa a ser o agente promotor da análise, discussão, avaliação e julgamento das situações reais vividas pelos alunos dentro e fora da escola, o mediador do processo, parceiro no estabelecimento de relações pessoais, interpessoais e cognitivas que viabilizam a (re)construção colaborativa de conhecimento. A efetivação dessa premissa requer um trabalho sistemático do professor para que os envolvidos no processo educacional considerem o ponto de vista alheio, respeitando-o. Requer, ainda, o respeito às diferenças individuais e o convívio com a pluralidade de opiniões, crenças e credos; o estabelecimento de acordos, negociações, contratos entre professor/aluno, aluno/aluno e professor/professor.

Desse modo, pode-se concluir com uma máxima da teoria piagetiana: o conhecimento é construído na experiência. Se a criança passa somente por experiências marcadas pelo respeito unilateral ela não constrói a autonomia de fato. Por outro lado, se a criança vive num ambiente em que pode participar dos processos decisórios, teoricamente ela desenvolverá sua autonomia moral e intelectual (ARAÚJO, 2001). Assim, a autonomia explicita-se pela participação irredutível e indispensável do indivíduo na elaboração de novas formas de pensar e novos conhecimentos a partir de relações de co-operação (LA TAILLE, 1992).

 

Considerações Finais

 

A educação na sociedade globalizada tem o compromisso de preparar o indivíduo autônomo para viver e participar de uma cultura que não é apenas local, que não se limita a espaços. Nesse sentido, a ampliação da consciência humana, na conquista do espaço cultural mundializado, depende da capacidade da escola em trabalhar pedagogicamente essa dimensão.

Essa concepção propõe uma ruptura paradigmática; a superação da hierarquia nas relações escolares; a substituição da fragmentação pela visão global, holística, que coaduna com os pressupostos apregoados na busca da autonomia (individual e coletiva).

Desse modo, superam-se as discussões a respeito da (in)disciplina, de suas causas e conseqüências, por compreender-se que a regulação de comportamentos (como modelos a serem seguidos), por meio de relações de coação, está pautada em uma visão “ultrapassada” de educação. Ultrapassada por explorar uma visão unilateral do mundo, puramente intelectual, privilegiando o pensamento racional, fragmentado e reducionista e compreendendo o conhecimento como uma mercadoria a ser adquirida e armazenada na memória.

Nessa perspectiva, a indisciplina escolar é de responsabilidade de um único sujeito: o aluno, que, sem se comportar com silêncio, passividade e estagnação, não permite o sucesso da transmissão de “conhecimentos”. Mas, nessa perspectiva, impede-se sua participação ativa, valorizando-se o professor como único detentor do saber e do poder. A postura indisciplinada dos alunos é uma reação a essa prática pedagógica.

Assim, as questões relacionadas à disciplina podem ser entendidas como controle ou libertação, do mesmo modo que a indisciplina pode ser desobediência ou denúncia, dependendo apenas das concepções educacionais que norteiam a prática pedagógica.

A superação da concepção que tem na disciplina a regulação de comportamentos se dá por meio de uma prática educacional problematizadora, que valorize as relações de cooperação, o pensar crítico e a construção coletiva, desenvolvendo a participação, a criatividade, o respeito, a cooperação, a tolerância e a conscientização das possibilidades humanas.

Essa prática reconhece que a inteligência e a consciência moral são construções ativas, baseadas na experiência. Compreende que a psicogênese do pensamento lógico, bem como a da moralidade, são explicadas por fatores biológicos e sociais, sendo dividida em estágios que marcam períodos de equilibração e de ruptura das estruturas de organização mental.

Nessa prática, o diálogo desenvolve-se a partir da tríade ação-reflexão-ação, numa relação horizontal, em que o educador e o aluno buscam saber mais, em comunhão. A disciplina passa a ser compreendida como construção interna, colaborando na construção da autonomia intelectual. Entendendo que essa autonomia possibilita ao indivíduo avaliar as regras de seu grupo e decidir se elas estão de acordo com os princípios de justiça que promovem a dignidade humana, a liberdade, a solidariedade e a igualdade. Assim, o sujeito autônomo não é reprimido, mas livre, porque compreende e vive o respeito mútuo como sendo bom e legítimo. Pela via da autonomia, o indivíduo constrói suas certezas, liberando-se das imposições à sua consciência.

É a partir dessa premissa que a escola se transforma em uma comunidade justa, democrática, voltada para a promoção do desenvolvimento moral em sua dimensão social. Essa visão da escola como comunidade democrática requer que professor e aluno sejam co-responsáveis pelos processos decisórios, bem como pelas conseqüências dessas decisões.

Nesta escola, as relações são de cooperação e os professores oferecem o meio social no qual processos de crise, assimilação e acomodação têm lugar, possibilitando aos alunos que exercitem diariamente as virtudes condizentes com a vida em sociedade, os hábitos do diálogo e da assunção de papéis e as habilidades racionais de julgamento moral que levarão à autonomia moral.

Desse modo, conclui-se que a produção do saber escolar não pode se restringir apenas ao conhecimento instrumental. Deve promover a autonomia do indivíduo, considerando que uma educação para a autonomia busca desenvolver o homem em sua totalidade, não privilegiando uma das dimensões, mas trabalhando “relacionalmente” todas elas, de modo a atender às necessidades de saberes em cada setor da vida cotidiana e dar conta da totalidade histórica vivida.

Porém, colocar a educação nesse patamar requer muitas iniciativas, sendo a principal delas promover uma reforma profunda do ensino, começando pela formação do professor, para que este assuma seu papel como educador e coordenador do processo educativo, demonstrando flexibilidade na compreensão do ponto de vista do aluno e estabelecendo limites e regras claros, que são mantidos de forma consistente num processo de disciplina interior, construído e adequado às condições e possibilidades dos alunos. Professores despreparados para o exercício da autonomia inviabilizam um projeto pedagógico cujo objetivo seja de que o conhecimento produzido na escola possibilite ao indivíduo sua inserção consciente na sociedade atual. Essa é a prioridade para que o sistema educacional não sirva apenas para atender às exigências das inovações, mas também para apresentar alternativas às ameaças, amenizando as conseqüências que acompanharam as mudanças paradigmáticas.

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Referências

 

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[1] Frade Franciscano. Licenciado em Filosofia (CENUFP, 2005); Especialização em Ética: De Aristóteles à Kant (FFSB, 2005); Pós-Graduação em Metodologia do Ensino Superior (FSDB, 2009); Licenciado em Teologia (UDT, 2010); Licenciado em Psicologia (USF, 2008) Especialização na PASCOM (CNBB, 2011). Exerce o ministério na área da Educação rede Privada/Publica.

[2] Globalização não apenas como mera concepção de integração econômica, mas como um processo que envolve transformações nos significados de intensificação das comunicações, tempo-espaço, desterritorialização, integração mundial, modernidade técnica e reflexividade social (CHESNEAUX, 1995).

 

[3]Os estágios marcam as diferentes fases da construção das operações mentais. Cada um é caracterizado por uma estrutura que articula condutas próprias da etapa. Para Piaget, os estágios não se sucedem linearmente, nem se justapõem uns aos outros. Progridem por integração de um nível inferior no nível superior (PERRAUDEAU, 1996). Entenda-se que as idades indicadas não são dados estritos nem normas a atingir, mas referências, indicadores flexíveis.

 

[4]O esquema é entendido como parte da ação ou da operação que é transferível para outras ações ou operações. Ele se constrói pela ação (direta ou mentalizada) do indivíduo sobre o meio. Organiza-se em estruturas que se reorganizam inteiramente na passagem de um estágio a outro (PERRAUDEAU, 1996).

[5]  A assimilação é o processo de ampliação da estrutura cognitiva ou moral, que permite que novas experiências sejam incorporadas e resolvidas de modos semelhantes. Antecede o período de equilibração (processo), que harmoniza a complementaridade entre assimilação e acomodação (estado de equilíbrio). Contudo, tanto influências externas (mudanças sensíveis do meio) quanto internas (maturação biológica e diferenciação do sistema nervoso central) podem causar desequilíbrios (ou rupturas) na estrutura. É nesse momento que se dá o processo de acomodação, ou seja, de ultrapassagem da crise pela criação ou reorganização da estrutura em um outro patamar mais elevado e estável, ou seja, em outro estágio (MARTINS, 2003; PERRAUDEAU, 1996).

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